No organismo de ‘A Febre’, pulsa a memória do corpo
O conflito do 'Cinema Urbano' nas mãos de Maya Da-Rin
Quando a febre surge como sintoma de alguma inquietação no corpo do Justino, minha memória me leva para um filme quase que completamente diferente desse: o paulista Obra, de Gregorio Graziosi. Entre os dois protagonistas, lá vivido por Irandhir Santos e aqui por Regis Myrupu, há certa convergência no conflito de uma dor física cuja origem externa é ligada diretamente ao peso do tempo. Em Obra, um arquiteto tem sua vida desconcertada ao descobrir uma ossada anônima no terreno em que seu prédio estava prestes a ser construído - a aflição em torno dessas pessoas soterradas pelo esquecimento o faz começar a sentir fortes dores na própria coluna.
Em A Febre, a dor e o cansaço também estão ligados à uma memória que também é do presente. A existência de uma família indígena num centro urbano onde só é possível ter acesso a comida pagando por ela, é uma existência constantemente ameaçada. O esquecimento das línguas, a objetificação do ser índio e o convívio numa configuração urbana responsável pelo domínio das terras. Com o anúncio de partida da filha para estudar medicina em outro estado e os atritos no trabalho, a febre (e o espírito na floresta) vem como um sintoma complexo desse mal-estar.
Diante disso, a diretora Maya Da-Rin consegue produzir um "cinema urbano" que, por exemplo, tornou o mineiro André Novais Oliveira referência. Um cinema de observação que tira do cotidiano uma reflexão de pertencimento - uma reflexão que não é simplista, iconográfica e nem mesmo devota ao ambiente urbano, mas totalmente centrada em seus ativos, nos personagens que atravessam a cidade e experimentam os limites impostos. Porque nesse sentido, aqui certamente muito mais que em Obra, a cidade também faz parte da vilania. Quando o ex-capataz, "parceiro" de trabalho, revela para Justino com naturalidade ter matado "índio de verdade", é um exemplo explícito dessa violência silenciosa, desse enclausuramento social.
A fotografia fria encontra um charme especial nos planos soturnos, captura a textura elétrica da floresta noturna como um ambiente antagônico ao da cidade, assim como as sequências no porto, a casa de Justino filmada em planos fechados e com excesso de sombras. É um olhar que parece compactuar com a febre, o desencaixe, como se previsse a angústia final. Regis, por sinal, premiado em Locarno como Melhor Ator, imprime essa aflição de modo muito interessante - sua performance impressiona, especialmente, nas cenas mais íntimas com seus familiares (como nas conversas com o neto, seu irmão e sua filha).
A Febre, portanto, é um filme que ganha muito significado pela narrativa quase sensorial que aposta. Para sentir a existência dessa rotina, Maya Da-Rin se desfaz de uma estrutura dramática mais convencional, com um caráter anticlimático que dimensiona a dor e a busca de Justino. Um filme que nos abandona no momento certo.
★★★★
Direção: Maya Da-Rin
País: Brasil
Ano: 2020
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