Restaurado em 4K, a fantasia de ‘Amor à Flor da Pele’ é ainda mais cruel
CRÍTICA Restauração lançada com exclusividade na programação do MUBI põe ainda mais em evidência o charme absoluto de Wong Kar-Wai
"Eu vivia à flor da pele e nem percebia... que das vezes que eu ria era vontade de chorar... chorar, chorar, chorar..."
A irreverente canção de Duda Beat poderia tranquilamente ser cantada por Sra. Chan e Sr. Chow nesse romance charmoso, e improvável, de Wong Kar-Wai. Com o marido em viagem de negócios, a estadia de Chan em Hong Kong é mais reveladora do que ela poderia imaginar sobre sua relação e sobre si própria. O mesmo se repete na parede ao lado, onde mora Chow com uma esposa que, embora esteja na cidade, não parece existir de fato. Então, de repente, eles estão realmente sozinhos.
Ao esconder os cônjuges, fazendo questão de nunca mostrá-los frontalmente, Kar-Wai faz parecer que são eles os amantes, eles a serem superados, e de certa forma são desde o começo da história. Essa decisão dramatúrgica faz duas coisas muito importantes: desenha de antemão a solidão que essas partes já identificavam no próprio relacionamento antes de conhecer um ao outro, e potencializa o complexo limiar entre o correto e o proibido, já que o encontro nem se trata mais de uma escolha, mas de um acontecimento inevitável.
"Você está saindo muito...", avisa a hospitaleira, preocupada que Chan esteja confundindo a vida de casada com a "juventude". Chow e Chan são figuras perdidas por si só, vagam entre trabalho e casa na esperança de que alguma coisa empurre suas vidas adiante. O romance que se constrói entre essas duas peças é o que torna tudo tão atraente à medida que se afasta da expectativa - uma aproximação lenta, cuidadosa e que nunca se revela como tal. Um espectador do futuro como eu (tinha quatro anos em 2000), pode fazer uma conexão com Cópia Fiel (2010), de Abbas Kiarostami, onde um casal de desconhecidos se aventura na fantasia de se amarem intensamente.
Aliás, há um elemento incontornável nessa obra (acentuado pela restauração 4K) que é o deslumbre cênico que pulsa em cada um de seus frames: os corredores vermelhos, as roupas pulsantes da Sra. Chan, as vistas embaçadas, as cores sempre harmônicas dentro dos ambientes e, claro, a trilha sonora de Shigeru Umebayashi - esse interesse abertamente estético na composição das imagens, que facilmente poderia torná-las exaustivas, empurra essa história do mero realismo para fazê-la encontrar um estado de fábula, um pouco poesia visual, um pouco crônica de dia-a-dia. Amor à Flor da Pele sobrevive, principalmente, como um longo conto de ilusão, um estado de amor alimentado pela solidão, pela ausência de uma "realidade" de fato. Quando Chan chora pela revelação teatral da traição do marido é um desses momentos que canalizam a intenção dessa "história de amor". Não é apenas desejo ou paixão, é algo além.
É por essa "resposta" que o filme brinca minimamente com a realidade enquanto finge relatá-la com franqueza. As voltas em círculo que dá nessa aproximação de amantes faz o espectador supor as intenções e desejos reais para que possa traduzir a silenciosa intensidade que há entre os dois, exatamente como Duda continua em outra canção: "Tanto sentimento guardado pra nós dois, que se eu só tivesse hoje pra poder te amar de novo... É que eu amo você. E eu nem sei porquê".
"Não saber porquê" faz parte desse amor inevitável, faz com que o medo dos amantes (em pensar, dizer e finalmente agir como anseia), transforma-se também no nosso, já que como testemunhas somos cúmplices de uma constatação unilateral: eles pertencem um ao outro independente de tudo o que não saibamos sobre suas vidas. E isso tem futuro? Wong Kar-Wai, cruel, sabe muito bem brincar com o nosso coração.
Direção: Wong Kar-Wai
País: Hong Kong, China
Ano: 2000
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