‘Anatomia de uma Queda’ se despedaça na fantasia da culpa
★★★★★ Vencedor da Palma de Ouro em Cannes e indicado a categorias principais do Oscar, novo filme de Justine Triet impressiona com uma frieza desconcertante
Quando o corpo de um homem surge estendido na neve com a cabeça mergulhada em sangue, ainda não era possível desconfiar o quão objetivo – e às vezes literal – seria esse enredo de uma morte sem prelúdio, num sopapo, partindo do mero choque à sedutora narrativa de assassinato: como pode esse homem despencar da janela enquanto a esposa cochilava no quarto e o filho passeava com o cachorro?
O que há de mais atraente em ‘Anatomia de uma Queda’, filme francês que se fez merecer todas as indicações ao Oscar – filme, direção, atriz, roteiro original e montagem –, é o quanto ele parte de lugares-comuns da cultura constante nos EUA de narrativas ficcionais e documentais sobre crimes e seus envolventes processos de resolução, mas como, ao mesmo tempo, ele está tão interessado em pegar outra via desse clássico trajeto. Será que o ponto do filme é realmente encontrar o culpado?
Nesse jogo de interpretações ariscas, a incisão de Sandra Hüller é feita com tanto cuidado que fascina. Ela não explode radicalmente, como fazem tantas atuações na frágil busca por um Oscar, mas vai aos poucos orbitando uma violência que está engasgada desde seus primeiros segundos em tela, construindo uma contramão, uma espécie de implosão que nos arrasta para uma experiência sensorial enigmática.
É curioso como o filme não se apoia cegamente nesse lugar do “mistério” ao gastar todo o tempo na defesa de sua protagonista, erguendo uma integridade indesviável sem que precise nos colocar em dúvida porque, corajosamente, o filme não é sobre isso. Além da bobagem que esse presságio poderia significar, Sandra nunca deixa sua personagem se tornar desinteressante, fazendo-nos questionar não o que esconde, mas o que ela mesma está atrás de descobrir. Claro, as dúvidas sobre sua leitura do crime existem e persistem, mas são emoções que estão em lugares mais distantes, numa culpa que parece vir de muito mais longe do que ela é capaz de ponderar.
Em outra camada, impressiona que uma trama tão "pé no chão" se use disso para flertar diretamente com a fantasia, a começar pelo contexto subjetivo de que o marido nunca nos aparece, de fato, e Triet foge dos flashbacks para avançar numa criação desviada de constatações - o sufocante áudio não-autorizado de uma briga, a dublagem do pai pela voz polida da criança, assim como a cena tão cobiçada do crime que também só é vista em plena imaginação.
Essa equação de um filme sóbrio que se sustenta na suposição é sobretudo charmosa do ponto de vista de uma história que também quer ser sobre “escrever uma história", que sabe a graça que é ter um espectador - seja na plateia do júri que julga sua ré pela relação de vida e sua ficção, seja em nós do outro lado da tela, que nos desafiamos a decifrar uma personagem indecifrável, apesar de tão exposta.
Acostumado com tantos filmes americanos que partem de tramas como essa em diferentes gêneros – das comédias como Entre Facas e Segredos (2019) aos cascudos como Os Suspeitos (2013) –, o espectador pode ficar toda a projeção tentando presumir reviravoltas ou revelações diretas, ao que filme sempre nega com parcimônia e objetividade. As histórias, quer estejam nas páginas, nas telas ou nas nossas memórias, não passam de ruidosas invenções, constatação que poderia ser perigosamente falha num filme de tribunal ao tentar assumir que “a realidade não existe”, mas Justine Triet sabe reverter essa expectativa para anunciar o seu desastre irreversível.
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