Em Angola, "Ar Condicionado" sonha com outra cidade
CRÍTICA Filme angolano se aventura na magia para ficcionar os sonhos sem resposta
O frame que ilustra este texto pertence ao momento mais mágico de Ar Condicionado, estreia do diretor angolano Fradique nos filmes de longa-metragem. O ex-soldado conhecido como Matacedo descansa na janela de um carro em movimento enquanto a voz derretida de Paulo Flores traduz tudo: sensações, memórias, imagens e até mesmo as inconsciências do personagem e de nós, que cá estamos teoricamente alheios à essa percepção de cidade. "Quando eu fecho os olhos... Imagino um país novo", começa a composição de forma delicada para materializar a metáfora de uma Angola cuja independência ainda não tem 50 anos, um país em transição de tempo, identidade e promessas.
Nessa Luanda escrita por Fradique e Ery Claver, há algum acontecimento físico (ou místico) que está fazendo os aparelhos de ar-condicionado despencarem das paredes por toda cidade. Como tecnologia de subversão do clima local, o objeto é essa metáfora imediata a uma cidade atingida pela modernização em tal nível que o ar perdeu seu caminho do mar em direção aos prédios. Mesmo nessas condições quase distópicas, Zezinha (Filomena Manuel) precisa concertar urgentemente o aparelho do seu chefe que, logicamente, não pode viver no calor dessa "nova" Luanda. Cruzando seu caminho com Matacedo (José Kiteculo), ambos encaram a realidade em sua forma mais intensa de desigualdade.
Se esses elementos já soam suficientes para a construção de uma trama excêntrica, Fradique comete a melhor de suas ideias, que é transformar tudo isso numa jornada onírica, extasiada, como se a existência dessas pessoas fosse mais digna no ambiente da magia, das viagens no tempo, nas caminhadas dos sonhos... Com a curtíssima duração de 70 minutos, essa história parece, ao fim, um longo devaneio sobre o que significa viver a esperança do futuro enquanto pouca coisa insiste em acontecer agora. É por isso que, além de todas essas questões, Ar Condicionado é principalmente um filme sobre como a memória está condicionada aos espaços, à política, à forma como cada um desses corpos são permitidos de pertencer a cidade. Para um segurança, uma emprega doméstica e um gerente de sucata, é como viver à margem das transformações e perceber suas exigências instantaneamente.
Quando dorme após finalmente sentir a efêmera brisa de um ar-condicionado, Matacedo vislumbra uma outra vida da qual não se sabe se ele mesmo experimentou ou se são apenas os votos de futuro ganhando imagem e som. Para compor essa sensação flutuante que acomete toda a trajetória, a fotografia de Claver é especialmente emocionante quando se casa à trilha sonora original de Aline Frazão para dar o tom da reflexão. É como um convite modesto, mas nada simples, para se adormecer junto a essa história e deixar que a razão do futuro permaneça lá mesmo, na vontade de, apesar de tudo, estar ali, de fazer parte dessas emoções e memórias que, mais que prédios e ruas, constroem uma cidade.
De noite adormeço o meu corpo antigo
Enferrujado e dorido
Como um sobrado em ruínas
Sonho para não esquecer
Esqueço ao amanhecer
★★★★★
Direção: Fradique
Roteiro: Fradique e Ery Claver
Produção: Jorge Cohen
Música: Aline Frazão
Fotografia: Ery Claver
Edição: Zeno Monyak
Som: Oswald Juliana
País: Angola
Ano: 2020
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