As Boas Maneiras: O horror não é emprestado, é nosso
“Dorme no chão, dorme no feno, dorme cavalinho, aproveita que é pequeno”.
Em uma de suas mais interessantes publicações, em 1979, o crítico belgo-brasileiro Jean Claude-Bernardet fala da dificuldade do público brasileiro de receber qualquer sentimento “estranho” das obras nacionais. Quando essa estranheza era importada da Europa, nas mãos de Fellini, Bergman ou Resnais, a aceitação era elitizada, e o mesmo encontrava empecilhos quando o artista brasileiro ousava desandar as normas do que era “permitido” produzir. Nos últimos 50 anos, essa situação talvez só tenha mudado de mão pela ascensão da indústria norte-americana, e é nesse cenário que As Boas Maneiras emociona por ser genuinamente brasileiro.
Seria fácil reduzir esta obra à história de uma mulher grávida de um lobisomem (um spoiler estrategicamente anunciado pela publicidade). Ao abraçar com muito amor tudo o que seria facilmente escondido, o que Juliana Rojas e Marcos Dutra alcançam dentro desse storyline é uma obra incapaz de incitar o medo pelo susto, ou pelo lugar-comum programado - algo que você encontra nesses “terrores” importados dos mais pífios aos mais interessantes. O segredo é outro. O desconforto que tanto acusaria a dependência externa da plateia diante o cinema brasileiro durante o século XX é retomado pela angústia do que é possível ver dentro de uma produção bairrista.
Quando o sigiloso personagem “principal” de As Boas Maneiras surge numa reviravolta que causaria inveja até mesmo a Hitchcock, há um medo indescritível. “Isso está acontecendo no cinema brasileiro” - era a única frase que eu conseguia repetir em minha mente. A partir desse momento, Rojas e Dutra embarcam numa aventura tão única quanto perturbadora, e as intenções se instalam de modo tão envolvente que até mesmo as questões mais importantes da obra são colocadas em ponderação.
Afinal, um espectador minimamente atento percebe que o filme está falando do Brasil, mas talvez não detecte com precisão as conexões entrelaçadas de seus temas. Embora todas as referências possíveis do que há lá fora, que alcançam até o espírito Spielberg da Nova Hollywood, a obra-prima que há em As Boas Maneiras é um mérito da nossa história. Até mesmo o mitológico lobisomem é evocado como se fosse exclusivo ao folclore brasileiro; por isso há um viés da religião que pregou as divisões desde a colonização - tanto na insistência da vizinha, quanto no desespero coletivo de que há um monstro escondido na periferia do outro lado da ponte.
A superpovoada São Paulo cantada em Sinfonia da Necrópole (2014), de Rojas, aqui é evocada como uma cidade explicitamente gótica, dividida e amedrontadora em um de seus lados. A cidade quadrinista é vista pelo apartamento de Ana que está intocável muito acima da rua. Sua proprietária branca não expressa qualquer apego elitista ou racial, e lá pode sofrer sozinha sobre a ausência da família, ou qualquer outra indigestão de sua existência. Mas justamente pela gravidez em questão é que Ana é julgada socialmente, assim como pode ter sido costume na vida de Clara, a empregada que só é contratada por ter sido treinada pela própria vida a sempre agir.
Essa história vai alcançando com muita dedicação discussões que já seriam rentáveis se terminassem por ali. Mas Rojas e Dutra sabem que precisam contribuir muito mais aos pensamentos que podem ser excitados, e estendem uma pequena fábula de horror a uma jornada pelo tempo. Há a construção de três protagonistas, e seria até simples se um deles pelo menos existisse no nosso referencial cultural. As Boas Maneiras entende até o fim que está contando algo novo, e que precisa assumir o desafio assustador de construir uma relação verossímil na “segunda” parte de sua história.
A consciência de maternidade sob as perspectivas sócio-racial e sexual é de uma honestidade implacável. É difícil digerir como se instalam as conversas sobre os limites da criação, da marginalização e da sombra da ignorância. Não importa se ali ninguém entende de onde veio Joel, a consciência social vai julgá-lo à maneira mais óbvia de seus preceitos, e é aí que a proteção de Clara transcende qualquer racionalidade. O que me fez chorar no cinema foi perceber que o menino-lobisomem é também o Guri escrito por Chico Buarque e evocado por Elza Soares, a voz que conta a história do Brasil - e isso é apenas uma das várias leituras que são proporcionadas pelo tom parabólico que se veste de horror e realidade.
É lindo perceber todas as fronteiras escancaradas por Rojas, Dutra e toda sua equipe técnica, para que isso fosse capaz de acontecer. Há coragem no parto de Ana para servir eternamente de combustível imagético, e em toda a insistência de mostrar que isso tudo é muito real. As limitações tecnológicas são contornadas pela mesma sacada que Spielberg teve na década de 90 para trazer os dinossauros mais críveis que qualquer objeto digital concebido nos dias de hoje. Há coragem na estrutura, no grafismo, nos temas, e principalmente na roupagem de seus gêneros.
Para quem conhece a dupla, não é surpresa que, de repente, o “terror brasileiro” que estão vendendo se transforme numa comédia, ou num musical que surge tão tímido como Christophe Honoré fez em “Em Paris” (2006), antes de se debruçar nas cantorias dos filmes seguintes. Tudo isso consegue transformar um balde de referências e inspirações na abertura de uma futura consistência do cinema de gênero brasileiro. Não é mostrar que podemos pegar essa garra emprestada com os “americanos”, é mostrar que isso também nos pertence.
As Boas Maneiras quer perturbar o que a gente conhece, e é isso que o faz ser gigante. Não há como ter qualquer certeza sobre o destino dessa história, fazendo com que sua narrativa cause uma aflição constante até mesmo quando resolve se despedir. A última sequência, apesar da motivação simplificada, eleva todos os sentimentos e contradições remexidos até ali, e encerra a saga com um horror que reforma sua gênese. Dentro e fora da tela, afinal, essa é uma grande história de resistência.
★★★★★
Direção: Juliana Rojas e Marco Dutra
País: Brasil
Ano de lançamento: 2018
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