Entre colonos e indígenas, ‘Assassinos da Lua das Flores’ faz do fôlego seu equilíbrio
★★★★☆ | Novo filme de Martin Scorsese revisita passado indígena dos EUA para rememorar cenário "brando" da violência
“Dê um pouco de respeito ao cinema”, respondeu Martin Scorsese ao O Globo quando questionado sobre sua afeição por filmes de longa duração, lembrando que até mesmo a audiência de hoje aceita passar várias horas na frente da televisão maratonando séries. Acho ótimo que, mais uma vez, esta seja a discussão central no lançamento de um filme seu porque, de antemão, dada sua persistência na estrutura norte-americana, esse recorte o coloca na defesa do cinema como uma linguagem que exige uma experiência, como o teatro, um templo sensorial que se sobrepõe ao mundo real, que precisa suspender a rotina do seu espectador.
Mesmo que existam outros tantos diretores contemporâneos que ousem muito mais na “metragem”, como por exemplo Lav Diaz e Béla Tarr que propõem outra relação com o próprio tempo, Scorsese marcha no fronte pela amplitude de repercussão midiática que seu impacto causou e continua causando no pensamento coletivo de “cinema industrial”.
Entrar na sala já com essa discussão fervente faz toda diferença porque a imersão que sua trupe técnica constrói nesse turbilhão socioeconômico dos anos 1920 faz com que sejamos submersos por essa realidade onde indígenas e brancos ensaiam uma convivência no estado de Oklahoma, EUA, mantendo em nós uma constante desconfiança sobre as contradições na suposta “igualdade de poder” estabelecida entre capital e natureza.
Quando o personagem do Leonardo DiCaprio surge na trama, depois de um deslumbrante panorama aéreo da chegada do trem, já somos deparados com uma região em plena atividade “produtiva”, seja por conta do petróleo em terra indígena ou pela simples criação de gado. Ernest, até então, é o forasteiro que ainda não compreende como funcionam as regras brancas daquele lugar tão ocupado por peles que ele reconhece no exotismo. Seu tio, vivido com uma intimidade perspicaz por Robert De Niro, é como o lobo manso da alcateia que aos poucos vai introduzi-lo à caça e ensiná-lo, lentamente, como o silencioso plano de colonização “branda” age de forma velada para sequestrar as posses que aquele povo indígena detém sob solo rico.
Como esse arco é estabelecido sem qualquer cerimônia no exato momento em que somos apresentados aos personagens, Scorsese também vai sendo bastante franco com a audiência, deixando claro que o ritmo de sua narração não será interrompido. “Killers of the Flower Moon”, no título original, escolhe ser um filme sem picos ou “grandes” acontecimentos para se manter num só volume, onde as linhas tênues que constroem cada personalidade são apresentadas de forma simultânea, sem que precise esperar qualquer reviravolta para revelar as “duas caras” de seus antagonistas.
O mau-caratismo, a crueldade e a própria violência, assim como a aparência de bondade e a polidez política, está sempre tudo às claras, estampado nos diálogos, nos gestos e até mesmo nos seus rostos e olhares. De Niro foge do que seria uma caricatura fácil – como o Tom Parker de Tom Hanks ou o Aldo Gucci de Al Pacino –, sobrevoando o carinho e a ameaça que seu personagem impõe, assim como DiCaprio que vive o limiar de alguém naturalmente corrompido. Mas o maior brilho está sobre Lily Gladstone, atriz com ascendência indígena que interpreta Mollie Burkhart, nativa que se casa com Ernest sem saber sua participação nas mortes da família – ela encanta no silêncio e no detalhe, honrando a própria descrição que o roteiro lhe dá sobre a nação Osage.
Com esse tabuleiro de xadrez disposto, a montagem usa a longa duração a favor de certo equilíbrio estabelecido na forma como colonos e indígenas ocupam a tela. Este, claro, é um filme contado sob ponto de vista dos personagens brancos num filme dirigido por um homem branco, mas a presença dos personagens nativos daquela terra é persistente por quase toda a projeção. Há uma cena, em especial, que a mãe de Mollie encara sua ancestralidade com uma paz imensa, que é impossível esquecer, principalmente pela presença delicada da atriz Tantoo Cardinal.
Seguindo o curso num só ritmo para deflagrar o lento desabamento daquela relação mediada por assassinatos jamais investigados, o filme consegue partir do drama para o suspense, para o thriller, às vezes se parecendo como uma clássica história de máfia que Martin sempre fez bem, e até mesmo para um “filme de tribunal”, de perseguição, de fuga. É um recheio completo mesmo tão sóbrio, sem qualquer velocidade ou surpresa.
Parte enorme de todas as tensões da história está em algo bastante discreto: a trilha sonora que mantém seus acordes em baixo volume sempre preenchendo diálogos e movimentos que presumem a suspeita de uma intimidação, assim como a fotografia mantém seus pés no chão até mesmo quando flerta com a fantasia.
Com 3h26m, Scorsese e time sabem usar todos os seus tons para nunca flertar com o tédio ou com as sensações de repetição e redundância. Não é uma história enxuta, claro, mas a impressão central é de que ela precisa ser detalhada para não perder o equilíbrio de sua narrativa que partem de polos tão opostos.
Diante de tantas discussões emaranhadas, fica claro que este filme não poderia ser breve, passageiro e sequer teria margem para explorar tanto o grafismo estético da violência que retrata. Como vai ficando bastante óbvio à medida em que as horas caminham e a memória do começo da sessão vai parecendo algo bastante remoto, “Assassinos da Lua de Flores” é um filme que usa o tempo para tornar parte do seu espectador cúmplice de um extermínio que nunca deixamos de testemunhar.