Até o Fim: a dor em mutação
Um passado que não é só rancor ou medo
Um espectador alheio ao cinema de Glenda Nicácio e Ary Rosa, que não fora treinado por Ilha (2008) e Café com Canela (2017), provavelmente terá dificuldade de traduzir o confuso conceito de "realidade" que a dupla baiana elabora nessa trama sobre irmãs encarando o próprio passado. Sem que seja novidade, Até o Fim está para além do seu texto, pois os saltos numa montagem frenética parecem buscar por conflitos presos também à imagem, por mais estática e imutável que ela seja.
Geralda espera a chegada das irmãs após receber a informação de que seu pai está debilitado entre a vida e a morte. Essa reunião, após 15 anos de ausência, suscita os fantasmas do passado e rancores nunca sequer transformados em palavras. A partir dessa premissa, facilmente poderíamos resvalar na gritaria de filmes como Álbum de Família (2013) ou É Apenas o Fim do Mundo (2016), onde o colapso da família irregular é apenas um gatilho de explosão, mas esta história tem sua chave virada ainda cedo: quando Ary e Glenda nos lembram de que estamos assistindo a um filme.
Quando o mesmo momento acontece mais de uma vez ou a tela se divide em duas inesperadamente, o referencial de realidade se borra. Diante de um texto denso (tratado com humor impressionante), é como se esses personagens existissem em outros planos que não aquele do "filme-documental". Ao redor de uma narrativa que é apresentada aparentemente em tempo real, há momentos em que a teatralidade se afasta dali quase como se fossem de realidades paralelas.
É uma forma até perigosa de entregar ainda mais ansiedade a uma história que depende quase que exclusivamente de suas personagens. Isso porque o texto nem parece ter tanta força de forma isolada já que tudo é descoberto, dito e transformado de forma instantânea. Então chegamos no coração fervente de tudo: Wal Diaz, Arlete Dias, Maíra Azevedo e Jenny Muller.
O abismo emocional entre Geralda (Wal) e Rose (Arlete), no primeiro terço do filme, expõe uma sensível e contraditória faceta desse passado. E o fato do espectador não ter muita informação prévia impulsiona a experiência porque, até então, não há como supor que esse encontro vá encontrar qualquer densidade para além da deliciosa sensação do reencontro.
É com a chegada de Bel (Maíra), a primeira baiana negra a vencer um Oscar, que o coração dessa família se desmancha por completo - a sensação é de confidência absoluta porque finalmente somos apresentados aos segredos que só aquela beira-mar escutou, de repente somos dignos de conhecer aquelas dores para além da superfície. Alinhado às intervenções visuais, é curioso que a engenhosidade de Glenda e Ary inflamem essa relação dramática com o espectador. É um deleite poder estar ali assistindo ao passado ganhar vida.
Ou seja, Até o Fim é um filme que cansa brilhantemente. Precisa cansar. Precisa que, do lado de cá, estejamos mais próximos do medo, do incômodo e da aflição, do que do amor. Cenas como a conversa da cozinha, a dos sonhos nunca realizados e a do acordeon são de belezas ímpares dentro de um cinema que prioriza a palavra não como alicerce, mas como porta de entrada para a emoção em seu estado mais sincero.
★★★★
Direção: Glenda Nicácio e Ary Rosa
País: Brasil (BA)
Ano: 2020
Comments