Em "Cabeça de Nêgo" não há felicidade na utopia
CRÍTICA Diante da indignação, a vontade de contar e construir história
No arrepiante desfecho de Cabeça de Nêgo, a realidade se mistura com a ficção de modo semelhante ao que Spike Lee faz ao fim de Infiltrado na Klan (2018). Do lado de cá, quieto e confortável diante da tela, não há outra possibilidade de reação do espectador a não ser ceder ao desespero. Até os mais alheios à realidade sociorracial brasileira são devidamente lembrados disso numa montagem compactuada com a fotografia que abre mão de sua estética para se aprofundar na confusão.
Nessa sequência (e me parece impossível falar desse filme sem começar por ela), pulsa o mesmo sentimento que ferve no relato de Espero Tua (Re)Volta (2019), de Eliza Capai, uma angustiante sensação de que não há beleza na utopia. A lembrança de que não há revolta cômoda e que no contexto desse nosso frágil Brasil, a revolta nunca é uma ação projetada de forma integral porque os lados dessa guerra, definitivamente, não dispõem das mesmas armas. Nos dois filmes, inclusive, há o cruzamento de imagens que pertencem ao mesmo contexto, o que parece os tornar emocionalmente filmes-gêmeos de denúncia.
Na trama, Saulo é expulso da escola em que estuda após reagir a um insulto racista e o desequilíbrio é rapidamente posto à mesa. Ele se recusa a sair e passa a ocupar a escola em protesto ao contexto que o levou a virar, de um segundo para outro, uma figura "agressiva" e "subversiva" da ordem. Nesse autoexílio, devaneia sobre a importância de sua existência política enquanto se inspira nos Panteras Negras. Quando alguém surge para "negociar" sua retirada, Saulo aponta a câmera de seu celular como se fosse uma arma sacada prestes ao gatilho.
Quem vive esse estudante é Lucas Limeira, ator cujos personagens são familiares ao circuito do cinema cearense independente. Em 2018, seu garoto preso na encruzilhada de uma cidade desigual foi até a Holanda com o premiado Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno, de Leon Reis, e recentemente viveu uma sufocante memória em Banzo, novo filme de Rafael Luan. Aqui, seu Saulo é uma figura que constrói a revolução de forma quieta enquanto ela borbulha para além dele e da escola que se transformou num presídio.
Sem dúvidas, a concepção de Déo Cardoso para trazer essa emoção à "realidade" está ao redor da linearidade emocional desse personagem, porque o que torna o desfecho tão assustador é a forma sem engasgos (e até cordial) que a energia dessa revolta cresce. Até há cenas em outro volume, como a invasão ao almoxarifado, a reunião dos professores e a chegada de sua mãe, mas de forma geral se impõe certa estabilidade prestes a explodir.
Em participação especial, Jéssica Ellen parece emular o que sua personagem fez em Amor de Mãe (2019) ao representar, ao mesmo tempo, a fonte de inspiração e uma das peças essenciais da própria revolta dos professores que não se contentam apenas em contar a história, mas em construí-la principalmente.
Diante do seu sintoma de indignação, o que há de mais potente nessa história é a simplicidade e eloquência no desenvolvimento específico desse ponto de vista. Afinal, apesar da pouca duração, Déo consegue ferver debates que partem da perspectiva racial e caminham pela desigualdade social, direitos de educação e o doloroso ímpeto da resistência. Pode até parecer óbvio para quem não assistiu ao filme e imagina uma penca de outros filmes brasileiros que se debruçam sobre os mesmos temas, mas apenas uma sessão já parece comprovar que Cabeça de Nêgo é uma experiência excêntrica o suficiente (de forma, objetivo e público) para que se torne referencial imediato.
Filme assistido no 9º Olhar de Cinema
★★★★★
Direção: Déo Cardoso
Roteiro: Déo Cardoso
Produção Executiva: Patrícia Baia
Fotografia: Roberto Iuri
Arte: Daise Barreto
Música: Herlon Robson
Efeitos Visuais: Márcio Ramos
Preparadora de Elenco: Nataly Rocha
Montagem: Guto Parente
Som Direto: Márcio Câmara
Edição de Som: Érico Paiva
País: Brasil (CE)
Ano: 2020
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