Cannes 2024: o deslumbre e a exaustão da cobertura
Em maio, encarei uma rotina desafiadora para cobrir o Festival de Cannes pela primeira vez
É natural compreender a admiração que a maioria dos cinéfilos têm por Cannes, talvez o maior festival de cinema do mundo em repercussão, mídia e debate. Neste ano, a seleção de “Motel Destino”, de Karim Aïnouz, para a mostra principal do evento me despertou para o que poderia ser uma grande oportunidade – conhecer o festival justamente no ano em que o primeiro filme cearense seria exibido. Tive menos de um mês para entender essa viagem junto ao Jornal O POVO, qual eu representaria, tendo que lidar com as burocracias do credenciamento até o fato de que eu havia quebrado o meu pé muito recentemente. Como isso poderia dar certo?
A imersão já começou engraçada na entrevista de imigração no aeroporto de Lisboa, quando o agente perguntou qual o meu filme favorito para confirmar a informação de que eu era crítico de cinema. Ele falava português, mas eu demorei a compreender que estava realmente me fazendo essa pergunta. "Árvore da Vida", respondi. Ele não conhecia mas acreditou em mim. Riu, carimbou o passaporte e me deixou passar.
Quando cheguei na última estação de trem, quase 48 horas depois que embarquei em Fortaleza, demorei para acreditar que estava ali mesmo, olhando para cima e lendo a placa com o nome daquela parada: “Cannes”. Saí pela porta, andei poucos quarteirões e voilà – lá estava ele, pomposo, o banner imenso do 77º Festival de Cannes, azul, emulando a melancólica experiência de estar dentro de uma sala de cinema encarando outros mundos. Estar ali era meu sonho há muito tempo, talvez desde que me entendi como crítico profissional.
Minha sessão de estreia já seria com o badalado “Megalopolis” do Coppola, às 11h30. Ainda eram 9h30, então saltei para a sala onde acontecem as coletivas de imprensa porque logo mais entraria a equipe de “Bird”, filme da Andrea Arnold com Barry Kheogan e Franz Rogowski. Àquela altura do ano eu ainda estava embriagado da canção ‘Muder on the Dancefloor’ com a emblemática cena em que Barry rodopia pelo casarão de “Saltburn”. Estar ali vendo ele, cara a cara, foi um primeiro baque muito importante para mim – era verdade, eu estava em Cannes. Esse deslumbre, porém, durou poucas horas.
Saí da coletiva às 11h e não consegui entrar na sessão de Megalopolis. A fila para entrar na área da Sala Agnes Varda era enorme e demorada porque a equipe de segurança revistava cada uma das bolsas. Cheguei na porta 11h30. Fui barrado. Então entendi a lógica de Cannes – o ingresso não garante o lugar, como acontece nos cinemas comerciais. Quando está muito próximo ao filme, eles liberam os espaços restantes para quem esperou na chamada “Fila de Último Minuto” para os que estavam sem ingresso. Fiquei em choque. Como pode eu ter perdido minha primeira sessão? Ter perdido Megalopolis? O editor de cultura do jornal já havia me consultado se eu conseguiria enviar algo sobre o filme para a edição impressa porque era o assunto do momento.
Daí em diante, então, foi Jogos Vorazes na luta pelos ingressos - que duravam não mais que 7 segundos para esgotar - e na corrida para garantir a entrada em cada sessão. Engatei na rotina exaustiva de sair de casa 7h, tomar café no caminho, assistir a 3 ou 4 filmes, chegar em casa perto da meia-noite, escrever primeiras impressões para serem publicadas ainda naquele dia no Brasil, e não dormir quase nada porque o dia seguinte já estava à espreita. A alimentação? Comida congelada e chocolate. No segundo dia meu almoço foi um Kit Kat – ou seja, voltei para casa com uma dor de cabeça imensa após uma belíssima jornada do Jia Zhangke e de um Paul Schrader acomodado. Andei bastante - a pé, de ônibus e de trem. A cidade belíssima, o céu sempre num azul profundo, o clima equilibrado entre o frio e o sol à pino.
A semana voou com algumas surpresas - como a ficção irônica sobre Donald Trump ser mais interessante do que o documentário utópico sobre Lula. Para além dos impactos da Rungano Nyoni e Andrea Arnold, claro, o maior ficou sobre a sessão de estreia de “Motel Destino”, filme que tinha me feito cavar a possibilidade de estar ali. Eu ia na sessão de imprensa mas consegui um convite para a Sessão de Gala com a presença da equipe – cobertura crucial para o jornal cearense que eu representava. Diferente das sessões convencionais, essa exigia uma vestimenta especial, smoking ou terno escuro com gravata borboleta. Quando estava na fila para tirar uma foto num tapete vermelho cenográfico da cidade, um grupo de senhoras me pediram para entrar nas fotos porque eu “combinava com as roupas delas”. Achei um barato. Na última foto, uma delas perguntou: “O que sua esposa vai achar disso?”. Ri alto. “Não tenho esposa”.
A sessão foi aquela explosão. As imagens de Iago Xavier dançando “Coração” rodaram o mundo. Foi mesmo um grande momento. O filme é bem mais comportado do que eu poderia imaginar, sem grandes saltos ou impulsos, especialmente sendo um retorno de Karim Aïnouz ao Ceará e suas tramas calorosas. Mas é um filme envolvente e teve seu momento de glória. Fazer parte disso, para além da minha posição de crítico, foi um grande acontecimento. No dia seguinte, pude perguntar ao Karim na coletiva de imprensa sobre o paralelo do seu Nordeste litorâneo em oposição ao Nordeste que Cannes estava habituado, os sertões escassos de Glauber, Nelson e Kleber.
Volto a Fortaleza dois dias antes do festival acabar porque preciso dar plantão no jornal. E volto com uma preocupação muito pessoal e inútil – e se eu não tiver assistido ao filme que vai vencer a Palma de Ouro? Logo no meu primeiro ano? Eu havia perdido os últimos exibidos no festival, o iraniano “A Semente do Figo Sagrado” e o indiano “Tudo Que Imaginamos Como Luz”, ambos cotados aos grandes prêmios. Acabou que venceu o americano “Anora”, do Sean Baker, que foi meu filme de despedida de Cannes, cuja crítica escrevi durante as sete horas de volta do voo de Lisboa, publicado nas últimas horas da sexta-feira, 24, o dia que antecedia o anúncio dos vencedores.
A imprensa que estava lá, pelo menos os profissionais que acompanho, ficou bem incrédula que o filme iraniano não levou a Palma, mas um “prêmio de consolação”, repetindo a ideia de que o principal prêmio deveria ter ido para um filme “urgente”. Era o caso desse que o diretor havia fugido do país no qual foi condenado e se refugiou na Europa para poder apresentar o filme no festival. Infelizmente perdi o filme e não consigo opinar sobre essa dita injustiça. “Anora” é mesmo um filme excelente e com certeza vai cair na graça do público, com seu passaporte já carimbado para o Oscar. Quando todos esses filmes chegarem aos cinemas, vamos retomar essa conversa – mereceu ou não?
“Baby” do Marcelo Caetano foi premiado e eu estava lá, na sessão de estreia com a equipe na Semana da Crítica. “A Queda do Céu” estreou na Quinzena dos Cineastas em sessão grandiosa com presença do yanomami Davi Kopenawa. Nunca tinha coberto nenhum festival e fui descobrindo tudo em tempo real. Foi tudo emocionante. Uma semana fascinante. Trem, muito café, croissant, caminhadas enormes que desafiaram meu pé quebrado. Mas deu certo. Agora já era, preciso ir todos os anos.
Como forma de documentar minha experiência aqui no Ensaio Crítico, site que me carrega para além do Jornal O POVO, deixo também meu ranking de filmes da edição, uma relação de textos publicados nesta cobertura e algumas fotos também. Obrigado a todos que acompanharam e torceram pela aventura.
RANKING
1. Bird, de Andrea Arnold
2. Baby, de Marcelo Caetano
3. Tornando-se uma Galinha D'Angola, de Rungano Nyoni
4. Capturado pelas Marés, de Jia Zhangke
5. Anora, de Sean Baker
6. A Substância, de Coralie Fargeat
7. O Aprendiz, de Ali Abassi
8. Lula, de Oliver Stone
9. A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha
10. Motel Destino, de Karim Aïnouz
11. Oh, Canadá, de Paul Schrader
12. Santosh, de Sandhya Suri
13. Grand Tour, de Miguel Gomes
14. Megalopolis, de Francis Ford Coppola
15. La Pampa, de Antoine Chevrollier
16. Três Quilômetros para o Fim do Mundo, de Emanuel Parvu
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