Cine Ceará: "Inseparáveis" invade a memória como quem paralisa o tempo
CRÍTICA Documentário apresenta a intimidade de duas pianistas que além da música, partilham a mesma vida
Quando Isabel e Amelia começam a vagar por um apartamento bagunçado de lembranças e discutem sobre a própria história, esse dispositivo que María Álvarez encontra para enquadrá-las no instante me leva a outro filme bem semelhante: Grey Gardens, de 1975. No documentário norte-americano, a surpresa de duas ex-socialites largadas à decadência e a inacreditável crueldade de seu registro, equação que transformou o filme em referência do “cinema direto” e até virou ficção com Drew Barrymore e Jessica Lange. No documentário argentino, a intenção de revelar a reclusão caótica parece a mesma, mas sob os olhos de Álvarez esse contraste encontra ternura.
As irmãs Cavallini outrora foram pianistas reconhecidas mundialmente e requisitadas, principalmente, pela irreverência de suas apresentações como se fossem uma só, tocando o instrumento ao mesmo tempo. Nos relatos do filme, esse vínculo umbilical é expandido para construir suas percepções em que vida e arte se colidem – solteiras, sem filhos e sem carreira, vivem juntas aos 91 anos como sempre viveram. Com os cabelos assanhados e claramente despreocupadas com a existência de uma câmera caminhando pelos cômodos apertados, elas conversam sobre aquilo que foram.
Conscientes de como o filme se posta diante delas, vão mostrando objetos escondidos como troféus do tempo – o calendário, o telefone, a caixa de música, o piano. Desconheço as circunstâncias que possibilitaram essa intimidade, mas ela pulsa em cada imagem, em cada vez que elas olham para a câmera como uma amiga muito antiga. Dessa forma, a obra nos faz criar uma relação com suas personagens muito antes de sequer sabermos quem elas realmente são.
Na maior parte do filme, María escolhe deixar que o presente se baste, trazendo imagens, vídeos e músicas do passado de forma passageira e sempre inseridas em momentos oportunos de emoção, como que só para nos lembrar de que aquelas senhoras nos contam a verdade, de que não estão alucinando – além de nos fazer pensar sobre o tanto de coisa que elas não contam. O que é lembrar de toda uma vida?
De repente, surge uma poesia pela qual uma delas é fascinada e que, charmosamente, parece resumir a força tão simples da forma como esse documentário é feito: “Tudo está como era”, de Olegario Víctor Andrade. Enquanto sua irmã muda de assunto, ela continua comentando a poesia: “Isso é tão verdade... sobre as árvores...”, nos falando que assim como a natureza lá fora – que nunca chegamos a ver pelas janelas –, elas também nunca mudaram a forma como guiam a vida, sempre juntas, enquanto ao redor passaram quase um século vendo o mundo girar. Vêm as memórias dos amores, das amigas, das viagens e do próprio país que “acabou com suas carreiras”.
Quando se separam, o filme ainda as mantêm juntas – numa saída de Isabel para tomar sorvete no McDonalds, ouvimos Amelia tocar uma de suas composições no piano, em casa, depois de confessar não saber pelo quê abandonou o passado. A sensação é de que María parou o tempo, de que aquelas senhoras ficarão ali para sempre da mesma forma como sempre foram: uma só.
"Todo está como era entonces:
La casa, la calle, el río,
Los árboles con sus hojas
Y las ramas con sus nidos.
Todo está, nada ha cambiado,
El horizonte es el mismo;
Lo que dicen esas brisas
Ya, otras veces, me lo han dicho”
Esse texto compõe a Cobertura do 32º Cine Ceará
Direção, Roteiro e Edição: María Álvarez
Produção: Tirso Diaz-Jares Rueda, María Álvarez
Fotografia e câmera: Tirso Diaz-Jares Rueda, María Álvarez
Consultor de edição: Sebastian Schjaer
Consultora de música: Romina Dezillio
Direção de som: Martín Grignaschi (MPSE) (ASA)
Elenco: Isabel Cavallini, Amelia Cavallini
Título Original: Las Cercanas
País: Argentina
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