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Foto do escritorArthur Gadelha

Em "Deserto Particular", a violência irreparável da masculinidade

CRÍTICA Indicado para tentar vaga no Oscar 2022, novo filme de Aly Muritiba é um ensaio sem respostas sobre a figura do homem inconsciente da própria opressão

Nos filmes do Aly Muritiba se encontra alguns personagens que falam por seus lados violentos, direta ou indiretamente, condição curiosamente contraditória em que o autor constrói o benefício da dúvida. Se em Para Minha Amada Morta (2015) o viúvo se descobre agressivo por uma questão irresoluta, em Ferrugem (2018), história sobre uma garota vítima do bullying machista, há uma amarga surpresa quando o filme se torna sobre um dos culpados – ou seja, há desafios difíceis de sustentar nessa escrita sobre “o outro lado”. Em Deserto Particular (2021), essa dinâmica é a beleza e a fraqueza do que chega na tela.


Dividindo sua história em duas partes pela abertura que vai acontecer com quase meia hora de filme, Muritiba assume que está fazendo dessa viagem uma jornada de “autodescoberta”, proposta meio desnutrida se colocarmos na balança a que custo ela é mantida. Daniel, policial afastado após uma agressão nunca explicada, abandona sua vida engessada em Curitiba para encontrar uma paixão até então virtual que mora na Bahia. Ao chegar lá, ele descobre que Sara se chama Robson – sim, um plot queer apresentado assim, de forma meio engessada.


Mesmo que não discuta questões de gênero e identidade, contrapondo a existência de uma sociedade tão conservadora quanto há décadas, a trama é conduzida com uma invejável presença de seus personagens. Entramos, então, no que é seu mérito de maior competência: as atuações que oscilam num tom de temor e paixão muito envolvente e, em certos momentos, até mesmo delicado. Antonio Saboia, Pedro Fasanaro, Zezita Matos e Thomas Aquino formam uma quadra de personagens que flui com muita naturalidade, apesar de todas as distâncias - destaque para Saboia e Fasanaro que conseguem sustentar a emoção de uma história tão recheada de contrastes e frustrações.


Lado a lado, a ambientação contribui para essa inquietação que Daniel sente longe de casa, entre Petrolina e Juazeiro, espaço que a fotografia de Luis Armando Arteaga capta sempre com uma sensação de suspensão do “mundo real”, incorporando a luz do sol nessa paisagem que é meditativa por si só e nos afasta das inevitáveis relações com O Céu de Suely (2006), de Karim Aïnouz. No fim da experiência, a plasticidade visual e sonora dessa viagem é uma de suas maiores garantias.


Antonio Saboia e Pedro Fasanaro

Debaixo dessas deliciosas ilusões, porém, acontece uma história que caminha na condução explícita da violência e nas suas formas de controle. Para o roteiro, está certo que o conflito é sobre a figura do “homem hétero” que se percebe na reprodução de brutalidades perpetuadas de tal forma na estrutura social, que são todas elas auto indetectáveis. Daniel não aceita ter se atraído por um homem, situação que está inevitavelmente mais ao centro das mutações do que a marginalização a qual Robson está submetido por uma exposição direta do policial - ou seja, ambas as vidas são chacoalhadas, mas só uma corre o risco de desaparecer.


Na catarse, a epifania de Daniel surge com uma emoção cativante (e a presença elétrica da dupla Saboia-Fasanaro é crucial para isso), mas o efeito é jogado fora quando a história se despede de Robson daquele jeito, na “transformação” celebrada com uma explosiva Total Eclipse of the Heart. Um no ônibus sem rumo após ter sua vida destruída, outro na rodoviária com um sorriso no rosto por ter se libertado de sua frágil regra masculina, apesar de ter condenado o outro à fuga.


Olhando esse abismo pela narrativa independente, é certo que o filme tem direito à contar uma história imperfeita para desenvolver um protagonista machucado, aprisionado, e nem acho coerente que a crítica se imponha moralmente sobre como as histórias e personagens deveriam ser para atender essa ordem moral do que são as “coisas certas”. Afinal, o cinema está aí para olhar o mundo e não necessariamente para ensiná-lo como existir; personagens e conflitos, assim como na vida, estão suscetíveis aos problemas, aos erros, e quando no cinema cabe a cada plateia pensar o que quer que seja.


Aqui, porém, o engasgo é diferente, pois o filme dá a trajetória por concluída no seu momento de maior crise e, apesar de presenciar ativamente todo o caos que sentencia uma vida ao silêncio, acaba com um “final feliz”, conformado com suas descobertas, sem culpa. Claro que Danieis estão aí por toda parte no Brasil e no mundo, mas se este é um filme do seu lado, Muritiba há de entender a existência desse descontentamento quando o filme resolve se encaixar logo nessa cumplicidade. Mesmo belíssimo e inesquecível, Deserto Particular não é um filme que gosta de ser “imperfeito”, atento às camadas e dissensos das coisas que nunca conversa, mas um filme que gosta de ser injusto.

 
 

Direção: Aly Muritiba

Roteiro: Aly Muritiba e Henrique dos Santos

Montagem: Patrícia Saramago

Fotografia: Luis Armando Arteaga

Som: Marcos Mana

Elenco: Antonio Saboia, Pedro Fasanaro, Luthero Almeida,

Thomas Aquino, Laila Garin, Sandro Guerra, Otávio Linhares, Zezita Matos,

Cynthia Senek, Flávio Bauraqui

País: Brasil

Ano: 2021


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