O amargo final de “Euphoria” ameaça sua própria inteligência
ENSAIO Bagunçada, segunda temporada soa alienígena
Quando chegou ao mundo, em 2019, a trama observacional sobre um conflituoso grupo de alunos do ensino médio marcou de forma bonita, e nada modesta, esse legado tão cansado que a era dos streamings norte-americanos está construindo para as “histórias adolescentes”. Diferente de projetos como Elite e Sex Education, Euphoria tinha desde o começo um grau de ironia e seriedade indissociáveis, como se aquele recorte tão aleatório de jovens fosse gravemente importante.
Claro, para além do que se espera de “adolescentes numa escola”, a série tinha Rue (vivida pela surpreendente Zendaya) para inserir o consumo descontrolado de drogas de forma centralizada à experiência da história – a partir dessa abordagem, distante dos meros sensos comuns, íamos de coração aberto à complexidade de cada personagem: em especial Jules (Hunter Schafer), Nate (Jacob Elordi, sim, o cara da Barraca do Beijo) e Kat (Barbie Ferreira), figuras que foram ficando cada vez mais impressionantes. Em meio a tudo isso, uma direção arrepiante do criador Sam Levinson que àquela altura parecia dominar a teia de complexidades em sua história atipicamente convencional.
Para pensar sobre a silenciosa fatalidade que acontece em sua segunda temporada, gosto de partir do seu ápice, o primeiro episódio. Introduzida como prólogo do episódio e da própria temporada, a história do Fezco (Angus Cloud) é de uma densidade (e estilo) tão desconcertante que naqueles brevíssimos minutos fica a sensação de que a televisão ainda não tinha recebido algo com aquele tom de tragédia e aventura entrelaçados de forma imprevisível e contraditoriamente cativante. Muita gente lembrou de Scorsese e Copolla, mas não acho que os exemplos desses autores tenha a comedida pitada de humor esbanjada nesse momento de Euphoria - é violento, corajoso e muito bonito. No fim do mesmo episódio, o arco se fecha numa curiosa contraposição da personalidade de Fezco entre a doçura com Lexie e a violência com Nate – que personagem precioso.
Ao longo da temporada, porém, nada propriamente grave chegava à tela para além dos prólogos, empurrando à mediocridade uma trama ora tão orgulhosa de seu desequilíbrio. O maior sintoma desse desleixo premeditado está na insistência no relacionamento entre Nate e Cassie, uma reviravolta de enredo tão tola que assusta; surge ali no primeiro episódio de forma engraçada e, de repente, está ao centro do grande conflito da temporada.
A sensação é das piores, principalmente pelo desperdício das atuações tão curiosas e dedicadas de Jacob e Sydney Sweeney. Não é surpresa que uma série sobre adolescentes se dedique tanto a um conflito de traição, mas nesta temporada, dessa forma, é como uma tragédia - afinal, o preço que se paga por tanta dedicação é jogar fora outras tramas tão essenciais e aqui sucateadas: a autoestima de Kat, a influência da Jules, a complexidade da própria Cassie.
Até mesmo os ótimos momentos são negligenciados, como o passado do Carl, o projeto de tráfico da Rue e a relação explosiva com seu próprio corpo – então o episódio que é dedicado à competência de Zendaya ou o monólogo incrível de Eric Dane surgem como objetos alienígenas, tumores que se desenvolvem até descobrirem não fazer parte do corpo e apodrecem. Apesar do todo (que importa para o autor) soar amarrado, o sentimento é de uma história abandonada, levada adiante na força da exigência – por isso não fico surpreso com os boatos de desentendimentos entre elenco e produção, atrito que pode ter redirecionado a rota arbitrariamente.
Mesmo com todas essas frustrações crescentes, assistir a segunda temporada de Euphoria nunca se torna uma penitência, e um dos responsáveis é o mesmo culpado pelo abandono: Sam Levinson, que se perde a mão no roteiro, garante seu legado na direção de cena, elaborando soluções engenhosas em parceria com toda a equipe de direção de arte, fotografia e montagem, deixando constantemente essa boba expectativa de que no segundo seguinte as lacunas vão se preencher.
Além dos já referidos méritos, a peça teatral da Lexi é esse lugar onde as qualidades são esbanjadas com muito critério estético, ao mesmo tempo em que esse recurso metalinguístico do personagem que se assiste revela um canto muito frágil de reflexão para as personagens, gesto tão fora do próprio universo que Euphoria parece assumir não saber mais nem que lugar ocupa no legado que ajudou a dar vida. Como recitou Ferreira Gullar, “perdeu-se na carne fria, perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia... perdeu-se na profusão das coisas acontecidas”. – “Mas está perdido comigo”, responderiam os fãs.
Quando caminha pro seu fim num estado quase fúnebre de tão imóvel e repetitivo, já está anunciado o silencioso desastre de uma história que se esqueceu, que não fez questão de avançar sobre aqueles sentimentos tão novos de desconfiança, medo e melancolia, que preferiu fazer um contraponto descartável às comédias românticas da Netflix para se despedir na amarga sensação de promessa - com uma terceira temporada especulada para 2024, quem sabe não é um arriscado teste de apego ou um criativo pedido de demissão.
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