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Foto do escritorArthur Gadelha

‘Guerra Civil’ enquadra com ironia um desastre da democracia americana

★★★☆☆ Com Wagner Moura no elenco, filme explosivo de Alex Garland tenta criar algo novo em meio aos clichês da guerra



Partindo das distopias "fim do mundo", cenário onde a sobrevivência é o único norte possível para os personagens, "Guerra Civil" traça um contexto que é imediatamente atraente. Na primeira cena, quando o presidente dos EUA prepara seu discurso com um temor evidente na voz, já somos dispensados de qualquer prólogo. De repente, a guerra já existe, há muito tempo.


É uma estratégia narrativa envolvente porque essa guerra civil dividida com uma insurreição militar já está em um grau avançadíssimo de causa-consequência, construindo sem tantos detalhes uma "nação americana" já tomada pelo pavor e suspendida de suas lógicas cidadãs e protecionistas. Para um país que provoca tantas guerras, mas que raramente é alvo de uma, essa matemática já traduz um escárnio curioso. Na trama, os personagens de Kirsten Dunst, Wagner Moura, Stephen McKinley Henderson e Cailee Spaeny formam uma equipe fotojornalística que busca seus próprios meios para cobrir o conflito, desarmados, mas munidos de um prazer pessoal em pôr a vida em risco. Quando partem para Washington D.C. na intenção de entrevistar o presidente cada vez mais ilhado, a jornada acaba interferindo numa violência já alastrada pelo país que escalona cada vez mais na gravidade.


Nesse trajeto, a trama tem suas limitações num formato "road movie" destravando novas missões a cada novo destino, como num videogame, fazendo com que as informações implícitas e a configuração da própria equipe, inserida de uma "novata" que vai se chocar com a crueldade do mundo, travem muito as emoções imprevisíveis. Por outro lado, também é nesse contexto que o filme mostra sua identidade já que o conflito, em si, mal chegamos a ver se não por pontuais demonstrações montadas de forma efêmera.


Essa abordagem permite que grandes cenas acontençam até com pouco barulho. A sequência do "sniper de natal" que atira para não ser atirado, independentemente das ditas "regras" e lados dispostos, ou a da supremacia "americana" que conta com presença assustadora de Jesse Plemons. São cenas com volume mais calibrado, mas que causam grande reviravolta na percepção moral sobre a dimensão da brutalidade que está ali exposta.



Garland soma nessa equação a forma como seus personagens, literalmente, exergam as contradições na qual também estão inseridos. Qual o conceito ético da fotografia ao olhar para o que acredita ser o "mundo real"? Os limites são testados de forma espaçada na trama, o que é sutil, de certa forma, até que essa discussão se anuncie demais para preparar o seu ato final. Na prática estética, há também uma ironia para permear a conversa - seja na constante inserção dos cliques fotográficos que interrompem a estética do cenário cru, seja na incidência de músicas que revertem a sensação do desastre, como se aquelas imagens horríveis fossem também um manifesto sobre uma nação que as produz mundo afora.


Ao fim da sessão, até ecoam alguns dilemas redutivamente políticos sobre a posição da obra, a pensar-se no tanto que sua cumplicidade defende essa dita revolução de forma muito limpa sem discussão idealista, mas logo fica claro que a experiência dessa história gira mais em torno de "apreciar o absurdo", principalmente depois do que acontece no seu último ato com uma eletricidade tamanha que facilmente supera toda fricção somada na filmografia da A24.


Além disso, que parece mesmo um plano de fundo, o que mais ecoa é Kirsten Dunst. Dos seus primeiros segundos em tela até a surpresa que é sua ação na sequência final, ela entrega o peso mais importante de toda a obra - seu olhar, seus gestos e até sua risada, cansada, desviada, que expõe a sensação de alguém que já viu tanto horror e se blindou numa frieza sem fim. Wagner Moura está contido, por vezes engasgado na tentativa de "soar natural" nos diálogos em inglês, e tendo sua presença muito suavizada, mas é uma boa "estreia" em outro "mercado" justamente porque é algo controlado.


"Guerra Civil", afinal, funciona muito bem à partir do que representa para seu estúdio outrora indie, inaugurando esse movimento de "blockbusters" com orçamentos moderados. Por isso é tão direto e sem reflexões tão esticadas para não afastar ninguém. É um mérito, também, porque no seu próprio estereótipo de "filme de guerra", aquele que seu pai provavelmente assistiria no sofá segunda-feira à noite, é uma experiência feita para causar um chacoalho ao pensar nesta nossa América de hoje, que habitamos e reagimos, constantemente, seja lá em cima, seja aqui embaixo. Será que faríamos o mesmo para romper com uma democracia já estraçalhada? Qual foto, qual imagem, estaríamos dispostos à fabricar e lançar para o futuro?

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