"Homem Aranha: Sem Volta para Casa" e o evento disfarçado de filme
ENSAIO Após tanta espera, terceiro filme da franquia chega ao cinema sustentado por uma expectativa atendida por ela mesma - spoilers à seguir
Como este novo capítulo nos fez pensar ao olhar diretamente para a história do Homem Aranha no cinema deste século, fica muito difícil comparar esse momento de agora com aqueles do passado pelo quão refém as histórias se tornaram da cultuada "Experiência Marvel". Elaborando a conexão das tramas a cada novo filme e série, os executivos deram ao Aranha de Tom Holland a curiosa tarefa de ser insuficiente por si só, como um limbo dando liga às histórias que realmente importam, somando-se aí um trâmite quilométrico entre estúdios para que a Sony pudesse fazer parte desse jogo.
De 2002 a 2007, a saga dirigida por Sam Raimi marcou uma geração bem específica por proporcionar sensações até então nada comuns - se hoje os "filmes de herói" são a parcela hegemônica da indústria estadunidense, na época ainda significavam riscos. Diferente das experiências de Batmans e Supermans em décadas anteriores, Raimi construiu um universo dinâmico, urbano e bastante iluminado. Esses filmes são individualmente consistentes porque, na época, precisavam viver sozinhos.
A saga de Holland, por outro lado, é um grande porém que escanteia até mesmo seu protagonista quando as distrações são diluídas - como é o caso dos dois primeiros. Este Sem Volta Para Casa, além de toda a comoção inevitável, talvez seja a confirmação frustrante de que essa condição foi normalizada. Podemos questionar o tabuleiro ou somos obrigados a curtir a jogada só por causa de quem joga? Afinal, claro que esse filme proporciona momentos de surpresa e diversão como nenhum outro, principalmente dentro desse contexto pandêmico de retorno às salas, mas eles são encaixados de qualquer jeito.
Ou seja, tudo bem que este filme esteja totalmente à serviço de uma manutenção alheia a ele porque é literalmente o propósito vendido e prontamente comprado - os roteiristas Chris McKenna e Erik Sommers aproveitam esse ponto de partida para fazer todo resto girar ao redor à qualquer custo. Afinal, quem é que vai reclamar de termos aqui Tobey Maguire e Andrew Garfield passando oficialmente o bastão para o garoto novo? Eu não vou.
Ver Tobey na tela aos 46 anos fazendo piada com sua coluna é revisitar tanto um carinho pelo que ele representa, quanto uma lembrança de que o tempo passou e condicionou a forma como as "histórias de herói" ocupam nossas vidas. Rever Garfield também é uma lembrança agridoce: tanto da efemeridade desses projetos mercadológicos, quanto do carisma incomparável da sua presença em tela. Mais que o explícito oportunismo cômico da ideia de reuni-los, esse encontro é um evento em si. Mesmo que fosse bobo, mesmo que nem tivesse falas ou ação, mas só os três aranhas na mesma sala já é motivo de uma reação "nova". Enrolando nas decisões tolas para chegar lá e se engasgando depois para emular um fim memorável, porém, esse ato vai virando um desperdício.
É engraçado como a trama vai se atropelando na primeira hora para justificar a forma como as coisas acontecem, pescando uma compaixão barata para ser o grande motor do enredo, ação que sobra até para a negligência absurda do Doutor Estranho, ambos movimentos escorados na proposta "dinâmica" de um vale-tudo para que a trama do multiverso possa seguir adiante. Curiosamente, um dos pontos positivos surgem por aí de forma quase independente na revisita dos vilões: Willem Dafoe é sem dúvidas a maior surpresa desse filme por conseguir entregar uma atuação que ultrapassa o lugar-comum das piadas e trocadilhos (do qual os Aranhas são reféns), reconstruindo um Duende Verde tão intimidante quanto. No desfecho, também há algo belo no ato do herói ser salvo por aquele que era um vilão.
Mas não sobra muito nesse labirinto, tornando a experiência cada vez mais cega pela epifania que propõe desenvolver com pouquíssimo ao redor. Nem esteticamente o filme se ajuda, fazendo com que três homens-aranhas protagonizem uma sequência final feia, sem brilho ou emoção visual, nem mesmo apoiada pela trilha sonora, entupida de efeitos visuais que nunca podemos ver propriamente, composição onde nada procura incentivar a catarse do momento. Mas nós sabemos que os Aranhas estão lá, confiança que a direção e a montagem muito cedo dão por suficientes.
A trama, pelo menos, aproveita toda a chafurdaria para dar a Tom Holland algum espaço de desenvolvimento no futuro. Contracenando com Garfield e Maguire, ele consegue se manter como um personagem distante nos movimentos de humor, mas principalmente dramáticos, suavizando até um texto constantemente engasgado nas autorreferências do universo.
Por fim, nada do que compartilho nesse texto chega a ser uma revelação porque essa dependência emocional é exatamente a proposta de uma história que se permite existir desse jeito quase laboratorial. Daqui a 10 anos, sem o impacto da nostalgia, pode ser que esse se torne um outro filme. Para o público de agora, não tem nem o que discutir porque eles jogaram baixo - aliás, ainda dá tempo de pedir o Garfield de volta?
Direção: Jon Watts
Roteiro: Chris McKenna e Erik Sommers
Fotografia: Mauro Fiore
Montagem: Leigh Folsom Boyd e Jeffrey Ford
Música: Michael Giacchino
Direção de Arte: Darren Gilford
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