Imitar a memória: pensamentos em Anocha Suwichakornpong e Petra Costa
ENSAIO Um olhar sobre Venha Aqui (2021), de Anocha Suwichakornpong, e Elena (2012), de Petra Costa. Por quê a natureza da ficção deveria importar?
Quatro amigos viajam ao oeste da Tailândia para visitar um museu que, após a chegada, descobrem estar fechado por tempo indeterminado para reforma. No novo filme de Anocha Suwichakornpong, Venha Aqui (2021), a sugestão de teatro é um aspecto dos mais delicados que atravessaram o 5º Festival Ecrã por superar que essa discussão seja feita de forma apenas textual e levá-las para uma experimentação das imagens. Não é natural quando se teatraliza a natureza, mas não é isso o teatro? Na tela silenciosa de Anocha, isso está no ato de ver a natureza imitada, de imitarmos os bichos e, nós mesmos, fazê-los que se imitem. Ora, também somos bichos. Quando viajamos (literalmente) de uma cena de teatro para um zoológico em fim de expediente, pensamos na distância entre a vida de um rinoceronte em habitat artificial e a vida de um ser humano num palco: só um deles está realmente fingindo.
Para essa discussão, comecemos com uma cena que se repete: a garota está preocupada em não poder manter no futuro o que faz atualmente, e o diálogo com o amigo se torna uma conversa quieta ao fim da noite sobre as memórias e desejos diante do suspense de se ter apenas 20 anos. Descansam numa casa sobre o rio. Erguem-se para ver os fogos que pintam o céu, o tempo está passando. Minutos depois, o mesmo diálogo, mas dessa vez sobre um chão sem rio e seu céu, numa peça de teatro também em "reforma" que antecede o zoológico. Para nós é a mesma cena, mas para eles? Se estão encenando inquietações que já viveram, a natureza de se imitar uma memória é natural? É incrível o quanto essa pergunta importa para nós.
Para respondê-la, lembro de outro filme cuja narrativa teatral é desesperadora: Elena (2012), primeiro longa documental da brasileira Petra Costa. Na trama, Petra tenta se lembrar da irmã que cometeu suicídio enquanto ela era apenas uma criança. Petra, em si mesma, parece lembrar pouco, e se agarra a todos os retalhos possíveis, como gravações em VHS feitas pela própria como forma de documentar sua curta existência.
Elena… Sonhei com você essa noite.
Procuro chegar perto. Encostar. Sentir seu cheiro.
Mas quando vejo você tá em cima de um muro, enroscada num emaranhado de fios elétricos.
Olho de novo e vejo que sou eu que estou em cima do muro.
Eu mexo nos fios, buscando tomar um choque, e caio do muro bem alto.
E morro.
Na conversa acima, que abre o documentário, Petra ensaia sua aflição em lembrar da irmã, de fazê-la significar algo mais consistente do que as poucas lembranças, do que as representações, confundindo a própria imagem com a dela. Para dar outro tom ao ensaio, surge sua mãe Marília, deitada numa rede de olhos fechados para o sol com a mão aberta no peito: "Ela me disse que sentia um vazio enorme aqui...", recita, cadenciada, visualmente entregue àquele sentimento. 20 anos após a morte de Elena, Petra e Marília estão ali sob a imponência de uma câmera encenando suas próprias dores, um documento da angústia que honestamente ocupa mais a ficção do que o discurso formalista de "realidade".
Sonhando em ser atriz, Elena é lembrada para sempre na performance, na imitação das memórias com a voz e com o corpo. "Toque-me, eu viro água", canta Maggie Clifford enquanto assistimos os corpos de filha e mãe caminharem na superfície de um rio, que é para onde elas estão se transformando. O fato dessas dores serem ensaiadas significa algo diante do que é natural? Mesmo que tenham superado, mesmo que não chorem mais pela sua ausência, mesmo que, na "vida real", lembrem-se de sua vida apenas com boas memórias e risadas, isso invalida a natureza do luto quando encenado? Por quê a "autenticidade" deveria realmente importar no teatro? Não é isso que é o teatro? Fazer as coisas, que não existem, serem reais.
Voltando para Anocha, há outro elemento importante para compor essa lógica. Na trama de Venha Aqui, tudo pode também não ter passado de um sonho, alguém que sonhou ter amigos no oeste da Tailândia, que sonhou mudar de corpo, que sonhou com a natureza. Assim como o teatro, o sonho é essa substância misteriosa que imita a consciência e as lembranças em corpos que podem não ser os nossos. Mas diferente do teatro, o sonho não está sendo assistido e tampouco se vigiando - o sonho é um impulso incontornável, e portanto tão natural quanto a busca de rinocerontes por comida na natureza selvagem.
No romântica necessidade de dar corpo várias e várias vezes à mesma memória, então, é que o teatro é como uma emulação consciente da natureza do sonho, da vontade de se fazer presente independentemente de si mesmo e de quaisquer paralelos que existam do lado de fora, na subjugada "vida real". Essa reflexão é necessária para dar ainda mais sentido etéreo - e até mesmo ético - à plateia, pois é na condição de espectador que essa dualidade desaparece e, numa troca honesta, não há mais diferença entre o ato (palavras, gestos, roupas, luzes e cenários previstos em roteiro), e a imitação encenada no palco ou na tela. Para nós, por mais que por tempo determinado, é tudo a vida real.
É por isso que choro quando Cristiano pega um violão e canta Homem na Estrada no meio de Arábia (2018), que sorrio quando Val liga para a filha dentro da piscina em Que Horas Ela Volta? (2016), ou que acredito no pós-vida de Hector Babenco na última imagem do filme da Bárbara Paz. É por isso que assistimos as memórias, quer venham do mundo ou dos papéis, como se fossem nossas.
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