Jackie: as meias-faces de uma história comum
Estreia de Pablo Larraín no cinema dos EUA é assustadora
Mexer com particularidades de grandes acontecimentos para representá-los é uma tarefa sempre sensível, principalmente por exigir o preenchimento de muitas lacunas que permanecem em branco. Assim foi com o frágil A Dama de Ferro, de Phyllida Lloyd, que trouxe uma Margaret Thatcher idosa em conflito com o passado; ou até mesmo Steve Jobs, do competente Danny Boyle, que dignifica e aflige uma figura tão popularmente conhecida pela genialidade. Em Jackie, o chacoalho traz mais atenção por (duvidosamente) tocar na identidade estadunidense de forma direta. Natalie Portman vive Jacqueline Kennedy, viúva do ex-presidente John F. Kennedy, assassinado em 1963. O projeto tinha tudo para se tornar mais uma biografia tradicional, mas um item leva o filme para o oposto da expectativa: Pablo Larraín.
Jackie é uma história que tem como principal apetrecho narrativo o seu formato, fugindo de abordagens convencionais, esquecendo a linearidade e transitando entre quatro momentos específicos. A costura dessas histórias tem critérios muito mais sensíveis que uma simples necessidade de preenchimento e Larraín é engenhoso ao não só remontar imagens do passado (todas originárias de mídias) como também por incorporar essa estética à realidade que recria - quase como o experimento de No (2012) que imita o VHS de sua época. O filme, portanto, é uma "bagunça" de tons; ora se assume realista, ora documental, ora algo entre os dois. Essa decisão por particionar a história de modo visual, inclusive, lembra muito seu último trabalho Neruda - mas se nesse as distinções soam grosseiras e claustrofóbicas, em Jackie, o uso encontra o mistério.
Aliás, essa conexão tem uma relação direta com sua ambição escancarada de se afirmar. O interesse em determinar Jackie como protagonista indiscutível é traduzido em planos sempre tão próximos que parecem capaz de registrar para além dos suspiros. Isso dignifica ainda mais o trabalho desconcertante de Portman ao concretizar com veemência "suas personagens" que, apesar do pouco tempo, estão em condições emocionais distintas. Seu tamanho na obra é tão grandioso que até J. Kennedy é reduzido à meias-faces, pequenas e distantes aparições.
Mas o que mais chama atenção é a razão de sua realização. Ter um chileno que acabou de filmar a fuga de um poeta comunista na direção de Jackie é um fato imensamente curioso. Pablo Larraín é um observador instigado e encontra nesse drama interno uma abordagem não-convencional de um fato psicológico que poderia ser do mesmo. O que a obra tem de mais poderoso é esse caráter episódico e a consequente imagem inconstante de uma personagem que nunca parece completa.
A presença de Larraín no projeto é ainda mais ousada ao não se ater a qualquer heroísmo; nem na superfície e sequer nos subtextos. Kennedy não é dignificado; em duas sequências é até martirizado pelos próprios "parceiros de cena" e sua morte é apenas um gancho narrativo e grandioso pelo símbolo. Nem a própria Jackie sai ilesa, porque, apesar de não ter qualquer apontamento direto, suas camadas permitem o questionamento. Larraín olha para isso sem causar qualquer interferência lesiva e consegue emocionar com um luto que nunca se escracha, uma dor que pulsa. A trilha contida da genial Mica Levi flerta com um clima macabro que só engrandece a estranheza de "uma história comum".
Ao sair perplexo da sessão de O Clube, em 2015, eu jamais diria que essa soma aconteceria (apesar de já ter sido anunciado meses antes): Pablo Larraín + EUA + Natalie Portman. Também não apostaria que seria um grande filme. A aposta da vez é se essa estreia estadunidense pode render a Larraín outros bons frutos conterrâneos. Mas, por ora, não há como saber se Jackie foi só uma aventura brilhantemente efêmera.
★★★★½
Direção: Pablo Larraín
País: EUA, Chile
Ano: 2016
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