Mubi: "Kaboom" existe entre sonhos eróticos e o medo de estar vivo
CRÍTICA O direito à alucinação
Quando assisti Mistérios da Carne (2004) fiquei tão traumatizado quanto certo de que Gregg Araki era um cineasta muito peculiar na forma como atravessa fantasia e realidade para dar vazão a um surto que não se contenta com o texto, mas que avança sobre todas as esferas da produção sem que, em qualquer momento, soe grosseiro no trânsito entre forma e conteúdo. Não existe um "mundo real" nas telas de Gregg, e percebo que Kaboom (2010) é uma obra que sintetiza todas essas intenções com orgulho e muita diversão.
Nessa trama desenhada como um "filme adolescente", os sonhos eróticos, a solidão efusiva da vida acadêmica e a paranoia da perseguição são elementos apresentados como sintomas do cômico suspense de "ser jovem", um curto limbo antes da vida efetivamente adulta. Enquanto Smith nutre tesão pelo parceiro de quarto estranhamente hétero e teme estar sendo perseguido por homens mascarados, Stella desconfia estar namorando uma bruxa. Apesar das convergências paranormais, nenhum deles tem certeza se suas experiências são reais ou meras alucinações. É como se fosse um coming-of-age que continuou na "pós-adolescência", como se o medo de estar vivo fosse uma constante inevitável.
Então o que há de mais brilhante em Kaboom é o seu constante tom de brincadeira que, em alusão ao contexto de seus personagens, consegue contar uma história que envolve mistério, aventura, investigação e, principalmente, tesão. Smith age como se entendesse a si mesmo sem que quaisquer informações substanciais surjam ao longo do filme, a não ser as aparições superficiais de sua mãe, o quarto, o parceiro e a amiga. Stella reafirma constantemente uma reação de repulsa a rotina, também agindo como se já tivesse deduzido tudo o que está acontecendo, e acontecerá, a cada um dos jovens daquela faculdade.
Lorelei e London, vividas por Juno Temple e Roxane Mesquida, entram na trama para bagunçar essas "constatações da realidade" de forma anárquica. Gregg, prontamente, as utiliza como elementos centrais para captar a bizarrice dessa história que se orgulha de ser "sem pé nem cabeça", honrando sua energia em cada um dos recortes acelerados, elementos trashs, colorações, tensões sexuais e paranoias travestidas visualmente.
Apostando todas as fichas nesse frenesi, a narrativa acelera, tensiona e afrouxa, constantemente, como se estivesse reproduzindo o caminho natural de excitação que leva ao orgasmo. Após avançar na tensa investigação de um assassinato, Smith solta essa: "Para esvaziar a cabeça fui a uma praia de nudismo perto do campus. Nunca tinha ido a uma antes. Admito que fiquei um pouco nervoso, mas foi libertador. As minhas preocupações, as coisas bizarras... tudo derreteu". Em seguida, conhece um cara com quem transa intensamente antes da aula.
Apesar dessa relação, porém, Kaboom não se apresenta formalmente como essa metáfora do "jovem em dúvida sobre a própria identidade e futuro", porque o roteiro trata os acontecimentos perturbadores como experiências necessariamente graves, incorporando o "ridículo" de tal forma que, de repente, tudo aquilo pelo qual nos afeiçoamos depende dele para sobreviver. Smith e Stella tiveram suas vidas viradas de cabeça para baixo e, a medida em que percebem a fuga como impossível, lentamente se entregam ao delírio - e é também nessa medida em que o próprio filme se descompromissa de "amarrar os dois mundos".
Para se despedir em caos absoluto, no maior estilo-homenagem ao Charlie Kaufman de Adaptação (2002) e Quero Ser John Malkovich (1999), Gregg Araki desiste de tudo e foge pela fantasia cômica "dos escolhidos" que guiaram boa parte dos grandes sucessos de bilheteria e mídia daquela década, como Senhor dos Anéis, Homem-Aranha e Harry Potter, talvez declarando que o jovem em crise, por sua geração, tem direito à alucinação, tem razão em achar que o mundo pode explodir a qualquer momento e as coisas precisam serem vividas de forma urgente. Mais que síntese da energia inesgotável de Araki, Kaboom é também uma das várias respostas deliciosas do porquê de se fazer, e ver, cinema.
Direção: Gregg Araki
País: EUA, França
Ano: 2010
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