Em ‘Marinheiro das Montanhas’ Karim Aïnouz se filma na invenção da saudade
★★★★★ | Voltando para a terra natal de seu pai na Argélia, cineasta cearense refaz trajeto de sua própria imaginação
Um professor me disse certa vez que “todo cineasta se filma quando filma”, quer ele esteja ou não na frente das câmeras – Kleber Mendonça Filho e seus Retratos Fantasmas concordariam já que foram literais na forma como a vida do diretor pernambucano invadiu a ficção. Do que é possível esperar dessa “literalidade” de filmes sobre seus filmadores, diante do que já vimos nos últimos anos com Spielberg, Almodóvar e Sorrentino, por exemplo, “Marinheiro das Montanhas” é de uma preciosidade imensa até mesmo na filmografia do Karim Aïnouz que há muitos anos não apresentava algo tão genuíno.
A melhor textura desse documentário é ele ser recheado de ficção, é Karim não encontrar tantas respostas e por isso decidir inventá-las sempre num espaço muito próprio de imaginação sobre a incompletude da história da sua vida. “A outra metade do filho”, desconhecida, dedicada a uma pessoa que também se imagina estar presente: Iracema, sua mãe, destinatária de cada passo do seu premeditado retorno às origens da família argelina.
Karim é criativo ao garantir que esse filme nunca se contente em encontrá-lo, enquadrá-lo, simplificá-lo num mero personagem errante. Como sua presença não tem corpo – aparecendo uma só vez, distante e fora de foco – e ele caminha por ruas, estradas, bares e vielas com a permissão de se perder, a narrativa foge de qualquer intenção pedagógica. Ao assumir que seu interlocutor não conhece aquela cidade, aquele país, aquele povo, o documentário e suas ficções partem para um registro informal de sua existência – afinal, este não é um filme sobre a Argélia, mas sobre o que ela esconde de Karim.
Com o susto de “parecer turista” aos conterrâneos, o diretor aponta constantemente sua câmera para eles com simpatia e uma anunciada busca de reconhecimento, gesto que tenta observá-los sem o exotismo comum a estrangeiros alheios àquela realidade social e histórica. Para isso, Aïnouz emula uma mistura da espontaneidade de Coutinho com os contadores iranianos Panahi e Abbas, lembrando até o radiografia que o palestino Kamal Aljafari faz de seu povo.
Ao mesmo tempo que tem essa camada mais física, o filme também vai mergulhando num fluxo subjetivo de recortes e fragmentos com imagens de celular que se alternam com outras mais profissionais, às vezes guiadas por narrações de percurso e organizadas em sequências sensoriais. As ruas, as noites, as paisagens, as pessoas, além de intervenções de arquivo do passado – a guerra contra a colônia que marcou a vida do avô, a orla de uma Fortaleza que nunca mudou, o quintal, as fotos e os aniversários de alguém que lhe deu a vida. História do mundo e de si ganham vida em conjunto, como se fosse um Godard de sua última fase experimental olhando para diferentes relógios, analógicos e digitais, com fusos-horários intermitentes, para construir a imagem de um tempo só. Essa costura me direciona também ao cearense Supermemórias (2010) pela reconstrução sonora de passos e vozes e pela inserção envolvente de músicas regionais que acompanham a trilha sonora.
Mesmo que tenha seu alto grau de realidade, nada parece literal, fazendo com que Karim seja tão fantasmagórico quanto sua mãe, estrangeiros sem lugar para onde voltar. E assim como Kleber revela, também é esclarecedor para nós ver o quanto esse sentimento inacabado do retorno é algo importante para seu autor. A memória nos leva imediatamente ao Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (2009), em que o andarilho também nem aparece, assim como nos lembra as inquietações de personagens de outros filmes como Suely, Eurídice, Violeta e Donato que estão sempre perdidos onde estão, às vezes querendo voltar para lugar algum, afogados na falta de perguntas e respostas sobre o próprio passado.
Tentando o mesmo que a reportagem de Nardjes A. (2020), documentário de Karim lançado em simultâneo com este no circuito comercial, “Marinheiro das Montanhas” também tem seu pulso político na aspiração de que defender a soberania daquele povo é como aceitar sua origem e seu papel como comunicador e construtor de histórias. Saio do filme tão atingido pela contraposição de saudade e vazio, que fico com a inebriada sensação de que fui eu que vivi essa vida, de que esse retorno espectral foi catalisador – se para mim pela oportunidade de preencher por conta própria memórias incompletas, para Karim, talvez pela certeza de que o seu caminho para responder a tantos silêncios de sua própria identidade está mesmo na ficção. Para um cineasta que se filma, me parece digno propor que se invente.
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