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Foto do escritorArthur Gadelha

Na ‘Memória’ de Apichatpong, os sons e as imagens são um só

ensaio Primeiro filme que Apichatpong Weerasethakul dirige fora da Tailândia é como uma viagem pelas sensações que esquecemos

Apichatpong Weerasethakul e Tilda Swinton

Certa vez um amigo me deu para ler ‘Funes, o memorioso’, conto do argentino Jorge Luís Borges, disse que eu gostaria. Pirei. Afinal, apenas a ideia de alguém que misteriosamente lembra de tudo é como um ponto de vista peculiar do que seria uma viagem no tempo. Funes, escondido no fundo escuro de casa, tem sua vida paralisada pelo próprio dom – como viver o presente se há uma tentação tão brutal em ter em mãos o passado, lembrar de todas as pessoas, de todas as pedras que pisou, de todas as mínimas mutações que seu corpo e mente atravessaram? É fascinante porque, desse nosso lado de cá, a memória é uma mera ficção tal qual os sonhos ou a imaginação. Minha mãe cresceu contando uma lembrança que ela jurava ter testemunhado para descobrir, quando adulta, que até então ela nem tinha nascido. Que loucura.


Na última semana de janeiro fui ao cinema assistir Memória (numa deliciosa projeção 4K da Mubi), primeiro filme do Apichatpong Weerasethakul gravado fora da Tailândia e que é protagonizado pela Tilda Swinton. Ela, que recentemente apareceu tanto n’Os Vingadores quanto em filmes de Pedro Almodóvar e Bong Joon-Ho, aqui é como uma cúmplice perfeita na condução desse mistério latente que remonta para além da narrativa interna, mas também afetiva e técnica em torno das várias respostas que podem ser dadas sobre o significado do cinema.


Jéssica acorda dividindo um susto com quem a assiste no escuro; o som de uma pancada bruta, como uma queda sem estilhaços, batida oca cujas ondas se dissipam subitamente após o momento em que ecoam. Há uma obra na vizinhança? É coisa da sua cabeça? Adiante vamos descobrir o quão difícil é descrever o efeito físico e sua verossimilhança.


Quando entra num estúdio de mixagem para sua personagem encontrar um som equivalente àquele que a despertou, então crescem as suspeitas de que Apichatpong está tentando repetir sensações à partir de um dispositivo novo e autoconsciente: este é, afinal, um filme sobre cinema? A fantasia das memórias, a ilusão dos sons, a ficção normalizada da reprodução imagética: devo confiar nos documentários que dizem imitar a realidade?


Apichatpong Weerasethakul e Tilda Swinton

Memória, porém, se supera. Partindo rumo ao interior da Colômbia, a investigação descompromissada de Jéssica acaba nos conduzindo para angústias que nos pertencem. Em especial no longo e magnético encontro que tem com Hernán, um morador rural que nunca saiu dali, essa conversa sobre as lembranças sensoriais e afetivas vai descampar num contraste entre a morte e os sonhos, passado e futuro interligados por aquilo que é imenso para nós, mas pouquíssimo relevante para a natureza do universo: o som. De que sons somos capazes de lembrar e o que eles nos dizem sobre nós? A viagem segue dentro e fora da tela. Será um filme diferente para cada um.


Preso em rotinas cíclicas de home office, meus sons são frustrantes: o ventilador ligado 24h, os carros passando ao lado, as crianças que brincam no parquinho debaixo todo dia às 16h, minhas gatas que pedem comida na hora do almoço. Há, porém, tantos outros sons acontecendo e que os subestimo arbitrariamente em detrimento do valor descomunal que dou ao que vejo. Então para além de Furnes, que lembra de tudo e por isso não vive, lembro também de Arnaldo Antunes, que não lembra de nada mas imagina a ficção do silêncio.


O silêncio

Foi a primeira coisa que existiu

Um silêncio que ninguém ouviu

Astro pelo céu em movimento

E o som do gelo derretendo

O barulho do cabelo em crescimento

E a música do vento

E a matéria em decomposição

A barriga digerindo o pão

Explosão de semente sob o chão

Diamante nascendo do carvão

Homem pedra planta bicho flor

Luz elétrica tevê computador

Batedeira, liquidificador

Vamos ouvir esse silêncio meu amor

O Silêncio (1996) | Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes


Quando acontece aquela descoberta, tão ambiciosa, contraditoriamente quieta e passageira, senti que o cinema estremeceu. De repente, todo o curso de Jéssica na cidade passa a fazer ainda mais sentido: a preservação das tulipas, os sons da cidade, o encontro com a arqueóloga, a escavação do túnel, tudo parte de um mesmo organismo sobre o que o tempo esconde. Longe, porém, das lógicas redutivas de destino ou presságio, Apichatpong não quer fazer de seu filme uma ficção científica para provar nada. Apesar de parecer como tal no momento do choque, não há propriamente uma revelação ali se o espectador estiver esperando prever algo além da epifania de uma personagem condenada a nunca mais viver o presente.


No catártico momento em que Jéssica se permite ao próprio dom, me vi buscando sons da minha infância que achava ter esquecido: a buzina da kombi que me levava para a escola, a batida do cadeado no portão que era feita de campainha, a Nana Caymmi que tocava no celular da minha avó, as vozes dos que partiram, o arranhado de um antigo ônibus de lata da Guanabara que eu era apaixonado. Lembro que chorei, mesmo Memoria sendo quase um filme de terror.

 

Filme assistido na 8ª Mostra Retroexpectativa do Cinema do Dragão

 

Direção e Roteiro: Apichatpong Weerasethakul

Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom

Música: César López

Montagem: Lee Chatametikool

Casting: Jorge Forero

Produção de Arte: Angélica Perea

Figurino: Catherine Rodríguez

Elenco: Tilda Swinton, Elkin Díaz,

Jeanne Balibar, Juan Pablo Urrego

País: Colômbia, Tailândia

Ano de Lançamento: 2021


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