Olhar de Cinema: ao não lembrar, ‘Metamorfose dos Pássaros’ inventa
crítica Tecendo retalhos das próprias emoções, Catarina Vasconcelos respira de olhos fechados.
"Levo minha mãe comigo
Embora já se tenha ido
Levo minha mãe comigo
Talvez por sermos tão parecidos
Levo minha mãe comigo
De um modo que não sei dizer
Levo minha mãe comigo
Pois deu-me seu próprio ser"
Comigo
Não demorou mais que um minuto de Metamorfose dos Pássaros para que surgisse em mim Comigo, composta por Romulo Fróes e Alberto Tassinari para a voz anciã de Elza Soares, canção que permaneceu sobrevoando minha emoção até o fim dessa longa trajetória em direção ao passado de Catarina e seu pai sobre as próprias mães em seus múltiplos sentidos de acolhimento. A mãe que, apesar de não existir mais, está aqui, seja em planta ou em sarnas. Aquela palavra que em búlgaro vira 'miada', em catalão 'mare', em chinês 'mutchi', em francês 'mere', em inglês 'mother', em português... 'mãe'.
Guiada pelas emoções, muito mais que pelas memórias em si, Catarina parece "inventar" uma história sobre sua família para poder pertencê-la de forma integral. A saudade do avô marinheiro, a família em terra firme, um atrito que emana solidão e, contraditoriamente, afeto. Ao refletir sobre o impacto de "quando morre uma mãe", o narrador traduz o luto em imagem: "Como se estivéssemos imóveis pintados num quadro enquanto a vida insistisse em passar fora dele [...] Éramos fantasmas".
Catarina reconhece que diante desse caos de sensações que acessam diferentes tempos, há pouca coisa para se filmar frontalmente. Por isso este não tem a forma nem de um documentário biográfico, nem de um drama de mera ficção assumida, afinal, essa metamorfose em tempo real não é um filme-arquivo. Para que essa definição assustadoramente fluída de significados subjetivos possa fazer sentido, Catarina constrói um espaço próprio de projeção, como se fosse uma mente compartilhada entre ela e seu pai Jacinto. Um campo de permanência tão instável quanto aos voice-overs que Terrence Malick recorre para expor sentimentos que não são internos e tampouco públicos - é um local novo, talvez para dentro de quem assiste.
À partir do real, as imagens se constroem nos detalhes, nos close-ups em olhares e objetos, e somente às vezes com o que é grande demais que nem cabe, como o mar, esse personagem que, até quando não está em tela, parece existir numa alegoria da dúvida sublime. É como se seu olhar se importasse mais com o silêncio: "você acha que as árvores pensam?", sussurra uma criança com medo de que sua pergunta pareça tola. Sem essa amarra com o espaço, a fotografia de Paulo Menezes se preocupa com os detalhes metafísicos dessa teia de personagens que, além de aparecerem em diferentes fazes da mesma vida, às vezes surgem sem a própria imagem. A referência que temos da própria autora, por exemplo, não é de sua aparência.
Catarina vai nos embriagando do seu relato livre até encontrar um ponto onde a divisão entre realidade e teatro se torna insignificante. É um ponto (arrisco dizer que ainda antes de surgir o título) que nos coloca para dentro. Quando uma criança pergunta, diante do sepultamento de um pássaro, se o pai está morto por ainda não ter voltado do mar, eu choro do lado de cá por compreender que, nesta pergunta, há um conflito sufocante que pouco tem relação com a existência da resposta. A ausência do que não é material, o medo que o afeto desapareça.
"Descobri que a migração dos pássaros demorou para ser compreendida [...] achavam que eram os mesmos pássaros, mas que tinham se transformado". Está claro que nem Catarina nem Jacinto estão completos de suas memórias quando o filme começa, e quando ousa acabar ainda há espaço para uma revelação sobre a realidade tão cômica quanto sublime: "Quando não te lembrares, inventa"
Certamente há um grau da emoção urgente aqui pulsando, e esse contexto nunca se escondeu da atividade crítica, mas me parece muito provável que esta história se torne referência para os filmes-memórias por construir esse "espaço irreal" de forma tão afetuosa. Esperta, Catarina sabe muito bem de tudo o que não se lembrou.
★★★★★
Direção: Catarina Vasconcelos
País: Portugal
Ano: 2020
Filme assistido no 9º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba
Observação: As aspas das falas mencionadas neste texto são livres projeções de como me recordo delas serem ditas, vou me utilizar da mesma poética de Catarina para me permitir esta dócil licença.
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