Nós somos Americanos, mas também brasileiros
O outro é o mesmo
Em Nós (2019), filme de Jordan Peele, a casa de uma família é invadida por uma outra família que, curiosamente, é idêntica. Visualmente, cada integrante, pai, mãe e filhos, são iguais às suas versões assustadas, mas há uma diferença gigante, daquelas que todo mundo vê, mas que nem é tão óbvia no sentido filosófico da obra: os outros são violentos. Quando os perguntam sobre quem são, a "mãe do mal" responde enquanto ri assustadoramente: "Nós somos americanos". E é isso, apenas essa resposta, que torna a obra de Peele numa engenhosa visão escalar, e pouco simplista da perspectiva racial, sobre o ser tão poderoso e agressivo que gira em torno do norte-americano - não a toa, "Us", no título original, pode ser lido como United States. E qual é, precisamente, essa visão política? Bom, vale avisar o óbvio de que abaixo há todos os spoilers possíveis sobre a obra.
Durante o filme, descobrimos de forma curiosa que o evento não cabe àquela família. Aparentemente está acontecendo com todos os norte-americanos, e se descarta em seguida que essa seja uma história tão sobre a projeção do racismo quanto Corra (2017), filme anterior de Peele. Já no pré-clímax, fazendo uma ligação direta às mensagens que lemos no início da história, descobre-se que cada americano possui uma cópia de si que cresceu debaixo da terra, em canais de esgoto escondidos pelo Governo dos EUA. Lá cresceram, e agiam exatamente como seus originais acima, presos a cada um de seus movimentos. Durante anos, porém, o grupo planejou uma fuga num ato de rebelião contra à escravidão que eram submetidos ali embaixo. Subiram, e toda a podridão que cada americano escondia é exposta numa versão tão avassaladora de si mesmo que matar era a única reação possível. Lembrei imediatamente que essa história podia ser aqui, no Brasil.
Nas eleições presidenciais de 2018, o país se encaixou numa difícil tarefa para a frágil democracia brasileira, pois Jair Bolsonaro e Fernando Haddad dividiram o eleitorado numa briga ainda mais danosa que Dilma enfrentou com Aécio em 2014. E, de repente, encostado na vontade elitista de tirar o PT da esfera do "poder brasileiro", aquele seu amigo de infância acabou defendendo a tortura, a homofobia, o racismo e várias das linhas fascistas, bem ali ao seu lado. É, aquele seu irmão, pai ou tio, o vizinho tão simpático da frente, a amiga da sua mãe que está todo domingo na missa - essas pessoas tão boas que, de repente, adotaram os discursos de ódio proferidos por aquele que viria a se tornar presidente.
Mas foi argumentando contra o PT que meu tio esperava que o Brasil pudesse pôr fim ao que chamava de "ideologia de gênero", que pudesse "metralhar os bandidos" - debaixo dele, que eu jurava conhecer minimamente, sempre existiu esse outro ser tão violento. Após tantos conflitos, bloqueamos um ao outro, e hoje, há três meses da presidência de Bolsonaro, não consigo mais olhar para ele e não ver tudo aquilo que vi. O monstro matou a criatura que, defendendo o fascismo, crê estar defendendo seu país - exatamente como fazem os americanos de Peele ao darem as mãos e protegerem as fronteiras das terras americanas. Ninguém entra mais por ali.
É uma mensagem forte para ser digerida rapidamente. Pensando nessas questões evidentes, ainda não fazia sentido pra mim o porquê daquela família também ter uma versão podre, como Peele poderia encaixar uma discussão racial por essa perspectiva? E a resposta talvez seja tão assustadora quanto a pergunta. Parece, quanto mais penso, que o simples fato de ser norte-americano é o suficiente para que exista uma versão violenta - isso porque os EUA formam a nação bélica onde o armamento, a violência e a guerra estão impregnados na sua reconstrução imperialista no pós-guerra, encrustados no American Way of Life, está na arte, na política, em todos os lugares. Pense na quantidade de guerras que os políticos e banqueiros norte-americanos financiaram durante décadas, quantas guerras criaram (agora mesmo no oportunismo com a Venezuela), e em quantos dos conflitos mundiais estiveram envolvidos.
Na gestão de Barack Obama, o mundo descobriu o que já era suspeita: eles sabiam de todas as movimentações políticas que levaram e mantiveram por décadas as ditaduras latino-americanas. Sabiam da Operação Condor, aliança que uniu os regimes militares do Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai entre os anos 1970 e 1980. Influenciaram diretamente o Golpe Militar de 1964 no presidente João Goulart - estavam dispostos a enviar “uma força-tarefa naval, com um porta-aviões, quatro destróieres (contratorpedeiros) e navios-tanques para exercícios ostensivos na costa do Brasil” com o aval dos presidentes John F. Kennedy e Lyndon Johnson.
Ser dos Estados Unidos da América é fazer parte de toda essa história, nem que você seja o ser humano mais simpático e correto do planeta (como o Tom Hanks). Por aqui, no Brasil, os que ainda hoje apoiam o Golpe de 64, os 57,8 milhões que elegeram Bolsonaro, e os tantos que, do lado de cá, talvez como eu e você que lê, ainda se escondam muito bem.