‘Noites Alienígenas’ confronta ancestralidade com a corrosão das cidades
CRÍTICA Como primeiro longa do Acre a receber estreia nacional, um filme que acaba dando conta da crise urbana de várias capitais
Quando a pele malhada de uma cobra preenche as primeiras imagens dentro do sonho de Paulo, indígena que vive no limiar de uma cidade esquecida de sua própria origem, ‘Noites Alienígenas’ já nos impregna de um delírio sobre os “mundos dentro de outros mundos”.
Nesse confronto da negação da ancestralidade com o colapso de uma civilização corrompida, surge um filme que tateia por uma personalidade mutante – isso porque decide olhar para sua dramatização sem uma centralidade clara, utilizando personagens que estão cada um na própria margem do conflito para construir uma teia de reações convergentes. Entendo que essa divisão possa assustar pela montagem às vezes flutuante, mas esse espaço consegue enxergar a contradição entre repulsa e cuidado que os moradores dessa Amazônia precisam enfrentar.
Chico Diaz assume seu papel de observador do desastre na pele de Alê, traficante que não lida bem com a operação dos novos grupos criminosos, enquanto os demais personagens caminham pelo labirinto escuro. Adanilo e Gabriel Noxx (ambos premiados em Gramado), concentram em si todas as tensões e angústias com seus personagens Paulo e Rivelino, cada um de um “mundo diferente”, mas diretamente afetados pela mesma violência.
Sandra e Kika, vividas por Gleisi Damasceno e Kika Sena, também participam desse gesto de reação como personagens que, pelo menos, vislumbram-se em outros destinos. É uma pena que roteiro não as dê tanto espaço de desenvolvimento, especialmente pelos obstáculos que existem entre elas e o futuro imaginado. "E o seu bebê?", pergunta Rivelino quando Sandra lhe revela ter planos de estudar fora do país.
A expansão das facções do Sudeste pelo Brasil acima não foi algo propriamente anunciado, mas que foi caminhando nas entranhas do sistema até afetar diretamente o próprio espaço urbano, mapeando grupos e limites para além até do que o Estado fosse capaz de prever. Mudou tanto as ruas daqui, no Ceará, quanto as do Acre. Mesmo que seja disperso na relação que faz para o contraponto entre passado e desordem, o filme faz questão de colocar isso na mesma mesa.
A mesma colonização cristã que segue coagindo culturas indígenas é a que posteriormente ilhou a desigualdade socioeconômica brasileira e que, para todo lado, resvala na onipresença da criminalidade. Para abraçar isso, Sérgio de Carvalho quase que embarca no delírio da salvação apocalíptica, mas isso fica ali na borda, na imagem de que a invasão "extraterrestre" é que está matando.
Alimentando-se da própria confusão e plenamente consciente de sua indesviável tragédia, ‘Noites Alienígenas’ ainda consegue compartilhar seu lamento com certa esperança que está escondida, porque assim foi obrigada, na natureza, em respostas que estavam aqui muito antes de tudo – sentimento que pode até nos levar ao A Febre (2020), da Maya Da-Rin. Em medida ao ritmo do filme, esse olhar é até que discreto, mas o suficiente para repovoar o imaginário das histórias que são, para o bem e para o mal, brasileiras.
Direção: Sérgio de Carvalho
Produtores: Karla Martins, Pedro von Krüger e Sérgio de Carvalho
Roteiristas: Camilo Cavalcante, Rodolfo Minari e Sérgio de Carvalho
Produtora Executiva: Karla Martins
Elenco: Gabriel Knoxx, Adanilo, Gleici Damasceno,
Chico Diaz, Joana Gatis, Chica Arara, Bimi Huni Kuin, Duace
Diretor de Fotografia e Câmera: Pedro von Krüger, ABC
Montador: André Sampaio
Diretor de Arte: Alonso Pafyeze
Figurinistas: Mariana Braga, Maria Esther de Albuquerque
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