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Foto do escritorArthur Gadelha

Encerrando o 10º Olhar de Cinema, “Nós” desmonta o fascínio pela cidade

CRÍTICA Propondo quase uma sequência afetiva de seu filme anterior “Casa”, Letícia Simões discute questões naturais à nossa percepção de identidade

“No Equador eu fui vizinha de um vulcão”, comenta Letícia Simões na introdução com polaroides vistas à contraluz para justificar sua constante viagem pelo mundo em busca das próprias histórias. Numa surpresa alusão aos fios entrelaçados como o emaranhado da identidade de cada um, e não a uma visão generalista de indivíduos, Nós parte de um legítimo processo de escuta: após colocar anúncio num jornal de Berlim em busca de pessoas em conflito com o lugar em que nasceram, ela recebeu quatro respostas.


O documentário nasce, portanto, de um dispositivo assumido sobre os outros, numa engenhosa relação da autora com o “estrangeiro” alheio enquanto ela mesmo o é. Letícia se anuncia como essa nômade que encontra certo conforto na condição coletiva da angústia, encontrando em cada relato um pedaço da sua aventura, na vida e no cinema.


Apesar dos mistérios e da própria dinâmica, porém, essa história começa com cara e história mais familiares. O primeiro a compartilhar sua voz é Karim Aïnouz, cineasta que nasceu em Fortaleza, no Ceará (terra que Letícia também viveu), mas que tem ascendência árabe pelo pai argelino, e hoje mora em Berlim, na Alemanha. Essa difusão de identidades está em seus filmes – do sertão cearense de Céu de Suely (2006) e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009) à fria Europa de Praia do Futuro (2014) e Aeroporto Central (2018), chegando na efervescência da Argélia de Nardjes A. (2020).



Mais do que uma reflexão sobre esses espaços, o personagem apresenta também um ponto essencial da discussão que é a língua, vista de forma institucional como extensão do conceito de “casa”, mas que talvez seja o elemento mais revelador que qualquer fisicalidade. A construção do idioma em suas disposições socioculturais é mais do que a fala, mas a forma como se pensa e age – revelação que poderia ser da Dra. Banks de A Chegada (2016), e também está em Karim quando compartilha seus sentimentos sobre as palavras Casa (português), Home (inglês) e Maison (francês).


Karim Aïnouz

O assunto é retomado quando Letícia encaixa no conceito do forasteiro o Nheengatu, língua indígena que dá conta do passado e do futuro, uma previsão totalizante da condição existencial sobre imagem, memória e lar. Tsead viajou 20km e passou a falar tão diferente ao ponto de voltar para casa e virar forasteiro aos outros, reforçando essas sensações de uma língua que muda o corpo.


“Eu em Berlim sou outra coisa”, anuncia Enver na sua percepção de uma existência plural de si mesmo, lidando com essa intimidante instabilidade com a poesia, tal qual Letícia o faz com o cinema, que era uma coisa na Bahia, outra no Ceará, outra em Cuba... Eva, que encontra essa resposta na música, também resolve respondê-la por lá, não dando depoimento frontal, mas aparecendo numa carinhosa sobreposição com as árvores no toque de um instrumento tão grandioso quanto acolhedor.


Como faz parte dessas dúvidas, o olhar de Letícia parece sempre um convite meio-respondido na aproximação dessas pessoas, pois o enquadramento nunca é encaixado ou repetido, mas sempre particular a quem escuta: Karim no canto direito, Enver no esquerdo, Tsead olhado de baixo para cima, enquanto Nitcheva é observada de cima para baixo numa instigante posição diagonal, como se fosse um aceno ao desequilíbrio que ela narra.


“Você não consegue fugir da coisa que você é. Aceitando isso, você consegue aceitar a loucura dos outros”, revela Nitcheva sobre a experiência de ter virado escritora, apesar do sonho de ser cantora de rock, e de ter passado por um hospital psiquiátrico, lugar que também é narrado como um “lugar”, vivência de comunicação e presença cujo aprendizado é equivalente aos países citados.


Pêdra Costa

Ainda no prólogo, Letícia prepara com expectativa o surgimento de Pêdra, artista que só vai aparecer no último momento de seu filme porque é também como uma despedida da autora àquela cidade que deu luz ao filme e a esse pedaço da sua vida. No relato, meditativo e curioso, Pêdra, que ainda se sente estrangeira sem amigos ou domínio da língua alemã, sintoniza a casa em si mesmo. “Tem países que foram colonizados, e tem países que foram colonizadores, então isso modifica bastante sua relação de corpo, né?”, pergunta retoricamente, porque muito além dos desejos pessoais de desprendimento, a história do mundo é movida por essas catástrofes; da colônia, do império, da guerra, de uma dominação territorial que moldou tudo.


Ao trazer ao centro de uma conversa íntima a vontade de entender nossas casas, Nós é uma emocionante escolha para encerrar o 10º Olhar de Cinema, que neste ano homenageou o cineasta palestino Kamal Aljafari e sua busca pela reconexão com as memórias e os corpos (vivos e estáticos) das suas cidades levadas pela guerra e que o fizeram ser também esse nômade pelo mundo no cinema. Assim como Kamal, Letícia se põe num lugar contraditório e desmontador do fascínio pela fisicalidade afetiva dos prédios, praças e ruas que compõem os centros urbanos. Porque, no fim de tudo, esses espaços gerem onde, e como, as pessoas podem existir, então sobram as respostas quanto ao que cada um faz para equilibrar esses limites com a própria vontade de onde estar. Mais que cidades, pertencer às palavras e às amizades. Eu, que sou cearense nascido no Pará, fiquei pensando se não é esta a hora certa de fugir.


Essa crítica compõe a cobertura do 10º Olhar de Cinema

 

★★★★

 

Direção: Letícia Simões

Roteiro: Letícia Simões

Produção: João Vieira Jr., Nara Aragão

Fotografia: Letícia Simões

Montagem: Eduardo Chatagnier

Som: Nicolau Domingues

Música: O Grivo

País de Origem: Brasil

Ano: 2021





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