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  • Foto do escritorArthur Gadelha

No olhar ancestral, ‘O Estranho’ emerge das ruínas de São Paulo

★★★☆☆ Cruzando ficção e documentário, filme questiona o progresso assentado na memória de um país que desaparece

Quando saltamos de um pássaro invisível que corta o céu limpo para o pouso de um avião no Aeroporto de Guarulhos 500 anos depois, essa viagem no tempo parece querer nos lembrar aquela de Stanley Kubrick que chacoalhou a ficção científica em 1968. Pode parecer um paralelo alienígena, mas o salto da natureza para uma “modernidade” violenta aqui se constrói frontalmente, na observação de que o aeroporto, um lugar tão representativo da engrenagem das metrópoles, foi construído sob o preço da destruição. Como vamos entender mais adiante, um território indígena.

 

Tratando da ficção, Flora Dias e Juruna Mallon não tratam o organismo dessa revelação partindo de lugares-comuns que um relato documental traduziria, mas na observação de um cotidiano aparentemente alheio a esse mal-estar. A trama coloca ao centro funcionários desse aeroporto que se cruzam ao longo dos dias enquanto compartilham de angústias operárias. Patrícia Saravy e Rômulo Braga, especialmente, atraem grande parte dessa gravidade como peças desse tecido capital.

 

“Quando eu morrer...”, começa uma das amigas num papo informal, situações que mantêm em evidência essa conversa sobre entender a memória para além do que é possível registrar ou lembrar, subtexto que acompanha toda a história, mesmo que a passos bastante lentos. O filme ganha uma nova camada de forma explícita quando abre mão de sua teatralidade para o próprio documento e passa a dar espaços a personagens indígenas que colocam a conversa à mesa.

A ideia que surge a partir desse encontro é até interessante, lembrando a estrutura fascinante que tem Currais (2019) ao pôr uma personagem para contracenar com a dita realidade, mas essa equação parece mais protocolar do que nativa, tornando ainda mais evidente o quanto sua ficção anterior custou tanto a abrir um jogo que já estava declarado. São dois filmes que se apartam, mas sem colisão.

 

Na percepção geral do que se anuncia como objetivo, porém, “O Estranho” continua sendo um filme com propósito comovente e com seu certo impulso autêntico na elaboração de uma história que questiona este nosso lugar alheio às violências do progresso. Enquanto o tempo presente se torna essa eterna condenação, a resposta nunca foge do passado, da certeza de uma ancestralidade que, mesmo moída e esquecida, não vai desaparecer.



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