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A emoção solitária de ‘O Expresso Polar’, um estranho filme de natal

  • Foto do escritor: Arthur Gadelha
    Arthur Gadelha
  • 24 de dez de 2022
  • 3 min de leitura

ensaio Em meio aos experimentos técnicos, Robert Zemeckis constrói um filme infantil que assusta mais do que deslumbra

Quando chega dezembro e o assunto é, inevitavelmente, os filmes de natal - numa discussão que sempre expõe os clichês que não cansam de se repetir nas comédias românticas e animações infantis - eu sempre vou me lembrar com carinho de dois títulos: Um Herói de Brinquedo (1996), de Brian Levant, que apesar da estreia ter minha idade estacionou na Sessão da Tarde repetidas vezes, e o enigmático O Expresso Polar (2004), de Robert Zemeckis. Não lembro quando o assisti pela primeira vez, e nem quantas vezes fiz isso, mas lembro de ser criança e já ter estranhas emoções despertadas por essa trama de um garoto que é levado para conhecer o Papai Noel a bordo de um trem noturno.


Lembro de assisti-lo já sem acreditar na existência do bom velhinho, e demorei muito a entender porque esse filme me incomodava tanto e, mesmo assim, reassistia sempre que eu tinha a oportunidade (inclusive lembro de ter alugado o DVD várias vezes). Depois fui compreender que a primeira das razões é meramente técnica. Lá em 2004, Zemeckis decidiu fazer algo corajoso e incomum ao construir um longa-metragem todo com capturas de movimento para dar reações reais a personagens de computação gráfica, uma espécie de embrião para a revolução que James Cameron faria anos depois com Avatar (2009). Existiam poucas referências naquele nível integral - o personagem Gollum de Senhor dos Anéis, por exemplo, já era incrível, mas era apenas um em meio a gravações do mundo real. Na tela de Expresso Polar, essa totalidade operava no limite do possível, soando mais fria do que a intenção - as expressões faciais, os gestos e principalmente os olhares, eram muito distantes, gelados, sem emoção.


A segunda razão é como um complemento narrativo, que era a constatação de que esse é um filme triste do começo ao fim. Não tem a ruminada "alegria do natal", mas uma contemplação recheada de mistério, lamento e solidão. Apesar do trem ser imenso, a trinca de personagens parece que está sozinha, compartilhando entre si esperanças silenciosas sobre suas próprias vidas que mal começaram. Em dado momento, quando já estão se aproximando da cidade, ouvimos o garoto cantar.


"Parece que ele anda

Ocupado e nunca vem

Quando é que vai

Lembrar de mim também

Mil presentes lindos

Todos vão querer

Só que eu nunca recebi

Eu só ouvir dizer"



Essa melancolia, alinhada com o vazio imenso da estrada e o olhar robótico da animação, dão a essa cena e tantas outras um caráter quase macabro. Ao mesmo tempo, hipnotiza, nos coloca para dentro, como que se conquistasse um olhar peculiar sobre a intimidade de crianças que descobrem tão cedo a existência do mundo. Do seu jeito ora mecânico ora sentimental, sinto que esse filme é bonito por conseguir existir no meio do caminho, como se observasse o momento em que a magia está se apagando naqueles corações. É muito sutil, principalmente porque a trama mantém a mitologia do Papai Noel e a maravilha de um canto frio que produz presentes para todas as crianças do mundo.


Além disso, as aventuras da história também soavam completamente novas para nós em 2004. O trem descarrilhando sobre o gelo, a jornada pelos túneis da cidade e a conversa com o espírito esquecido no teto, são sequências que tanto expõem uma urgência cativante quanto escondem um enigma sobre os significados dessa trajetória. Demorei para entender que a razão pela qual O Expresso Polar me deixava tão desconcertado era bastante simples: o filme me lembrava, sem que eu tivesse consciência disso, que eu estava crescendo, e mudando. Ainda hoje isso me emociona.


"Sonhos já perdidos

Renascem afinal

Eu já estou feliz

Por ser natal

Eu já estou feliz por ser natal"



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