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Foto do escritorArthur Gadelha

Padre Cícero: a experiência do sertão no primeiro filme colorido do Ceará

ENSAIO Dirigido por Helder Martins de Moraes e produzido por Elvira de Sá Morais, "Padre Cícero: o Apóstolo Rebelde" (1976) é um marco de produção e reflexão para o cinema cearense


Quando criança, eu era muito apegado às fitas-cassete de coletâneas católicas que minha vó Neiva guardava na sala, ao lado do rádio. Eram muitas, a maior parte assinada pelo Padre Zezinho, esse que ainda é o homem religioso mais conhecido nos interiores. Eu achava um charme, passava horas escutando sozinho aquelas letras, e sonhava com isso - como eu não queria ser padre, pensava que poderia me tornar "romeiro", um peregrinador de fé que caminhasse pelo sertão e, eventualmente, lançasse músicas católicas para tocar a fé do povo. Essas lembranças, de um canto muito específico da minha identidade, me vieram enquanto assistia a Padre Cícero: o Apóstolo Rebelde (1976) , de Helder Martins de Moraes, o primeiro filme colorido produzido no Ceará.


A lembrança foi irracional, mas percebo que ela veio porque o filme de Helder capta muito bem na ficção aquilo que muitos de nós experimentamos numa infância de interior: a onipresença católica, a devoção que essa configuração impõe às pequenas cidades do sertão. Embora seja um filme bastante protocolar, e por isso burocrático e pouco emotivo, é latente na obra a situação de desequilíbrio entre povo e igreja na formação de uma identidade cultural que permeia distintas gerações. Ora, se o filme se passa ainda no século XIX, e eu identifico ali mesmas imagens, sons e costumes que testemunhei ao longo da minha infância no século XXI, é porque aquele sertão resiste sob às condições da fé. O escritor cearense Raymundo Netto, autor de uma pesquisa admirável sobre a obra, lançada em 2017¹, voltou a uma das cidades em que o filme fora gravado e testemunha:


"A igreja de Nossa Senhora do Rosário continua a mesma. [...] No seu interior, mesmo com algumas poucas mudanças, inevitavelmente nos sentimos como se entrássemos na película [...] O Padre Cícero ainda era memória a revestir o imaginário daquelas pessoas, a maioria que nem o assistiu no cinema, e até outros que nem eram vivos naqueles tempos, mas que sabiam do filme" (p.109)

Nesse contexto, não poderia ser mais significativa a constatação que esse sertão de fé, evidentemente, atravessa a história do cinema cearense - ainda mais se adicionarmos a essa reflexão a relação política de Padre Cícero (rebelde da igreja) com Lampião e o movimento explosivo do cangaço. Esse imaginário de resistência persiste na memória e nos símbolos cultivados - a viagem fantasmagórica de Geraldo Sarno, por exemplo, é um desses pontos incontornáveis de reflexão em Sertânia (2020), uma coprodução Ceará/Bahia que investiga a sensorialidade da memória desses conflitos em meio à realidade da seca.


Jofre Soares e Ana Miranda

No filme do Helder, há o interesse objetivo de apresentar Cícero como esse personagem inerente ao Cariri e suas reações, uma figura necessariamente contraditória aos dogmas impostos pela Igreja, como fica claro no subtítulo utilizado no lançamento da obra. Quando a história finalmente alcança a crise entre esses poderes (o povo como uma terceira via espectadora), no entanto, o roteiro deixa Cícero com pouco espaço de construção, apesar da performance competente de Jofre Soares. O recorte, no entanto, é esperto o suficiente para deixar uma impressão robusta de tudo o que vimos: a chegada e a expulsão do padre de Juazeiro - antes do político, a construção do homem santo. O desfecho faz ainda mais sentido com a revelação, na pesquisa de Netto, que o diretor se preparava para filmar uma continuação.


Mas o que fica na memória, principalmente, são as imagens. Sendo o primeiro filme cearense a ser fotografado em cor, são inquietantes os registros sertanejos. Com direção de fotografia de José Medeiros, e assistência daquele que viria ser sensação no cinema brasileiro, Walter Carvalho, as imagens falam por si sobre um sertão imerso na contradição de fé e esperança.



A pesquisa de Raymundo Netto pode ser encontrada aqui e o filme (com bastidores da pesquisa) está disponível no streaming do OPOVO+


  1. Padre Cícero: o filme, de Raymundo Netto. Editora Dummar (2017)

2 Comments


Guest
Jun 14

Arthur, chego ao seu artigo pesquisando um pouco da produção cinematográfica no ceará, agradeço pelo excelente texto, e também aproveito pra lembrar do curta " A poesia folclórica de Juvenal Galeno", filme de 1971, de Régis Frota Araújo, que já era em cores!

David Felício.

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Guest
Jun 19
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Olha só! Grato pela informação, não conheço esse curta e agora vou atrás! Abs, Arthur

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