No rio esquecido de "Pajeú", a memória sufoca
CRÍTICA Uma cidade que desaparece aos poucos
"Eu ficaria muito triste se minha filha me esquecesse"
Aquela sensação angustiante de acordar e não lembrar de um sonho. Você tenta o dia todo, lembra dos sentimentos, de certa euforia ou medo, mas não consegue materializar essa outra realidade apesar do esforço. Embora tenha sido imaginário, parece uma história tão antiga que sobrou ao esquecimento. De repente você desiste, e aquele sonho tão marcante vai embora de vez. Hoje, ao pensar em Pajeú, filme de Pedro Diógenes, lembrei de um artigo publicado por Camila Vieira sobre Linz - Quando Todos os Acidentes Acontecem (2013), filme sobre uma cidade que desaparece ao ser soterrada pelas dunas. Camila vincula esse fenômeno ao desaparecimento de Linz, o protagonista que testemunha a própria solidão: "Por não ter vínculos com aquela vila que desapareceu, Linz é um corpo em travessia, um forasteiro [...] um corpo que vaga, que cansa, que some na paisagem. [...] Este é menos um personagem que um corpo no espaço."
Na trama de Pedro, Maristela também é essa personagem forasteira, um corpo em travessia diante do esquecimento inerente ao presente da cidade. A diferença crucial, no entanto, é que ela não é o "motor" do acidente, como descreve Camila sobre Linz. Ao sonhar com uma criatura que grita ao centro do Pajéu, antigo rio que deu origem a Fortaleza, Maristela é uma das milhões de existências urbanas, como a minha própria, por exemplo, que esqueceram em torno de quê a cidade se desenvolveu. Por isso, ao invés de sumir como Linz, ela vai contra a própria corrente do rio para encontrá-lo além do espaço cabido. Ao descobrir que foi canalizado, ela encontra a falta de ar, um sufoco que sequer é contemporâneo.
Mas o que há de mais bonito em Pajéu não é sua busca meramente formal, uma personagem incomodada com o passado que decide entendê-lo através do arquivo. Pajéu é uma busca sensorial que parece motivada pelo medo, como a própria Maristela repete em alguns momentos quando se dá conta que o rio foi esquecido não apenas de forma social, mas de forma institucional também. É uma busca que dá conta da aflição inseparável à natureza afetiva humana, uma busca que, além do passado, está preocupada em descobrir o que está realmente acontecendo agora. Dentro e fora dessa tela, o mundo está sendo esquecido.
É por isso que a narrativa se enriquece imensamente com a introdução pontual da "realidade", quando conversa diretamente (e sem pudor) com a estética documental. Além de pesquisadores, ouvimos fortalezenses e suas experiências com própria memória. "Você tem medo de ser esquecido?", pergunta aos banhistas. Numa dessas conversas, sobre o descaso municipal com a assistência básica à periferia, Pajéu expõe sua reflexão mais conflituosa sobre a crueldade de quem determina o destino da memória, já que é a própria cidade em desenvolvimento que escolhe direta e indiretamente o que será esquecido: seja o Rio Pajeú que agora passa por debaixo das ruas, sejam os locais distantes da concentração de riqueza.
Em paralelo, o roteiro individualiza essa aflição tanto no atrito de Maristela sobre a insistente "presença" de seu amigo Yuri, quanto no corpo estético de suspense que o filme assume (mais em som que em imagem) para materializar o choque do desaparecimento, o assustador e silencioso grito desse Pajéu que, aparentemente, faz parte de Maristela, uma professora que pouco tinha a ver com sua existência apesar de atravessá-lo diariamente.
É dessa forma, ora sutil, ora barulhenta, que Pajéu remonta a colonização de um espaço nativo "anterior" ao Brasil, aquela violência, que um dia estudamos, hoje convertida na magia do desenvolvimento, expondo que esse processo de silenciamento do horror nunca deixou de acontecer. Nos despedimos dessa história sem uma resposta, mas completamente chacoalhados pelo medo. Do lado de cá da tela, já somos exatamente como Linz, testemunhas de uma cidade que desaparece aos poucos.
Direção: Pedro Diógenes
País: Brasil (CE)
Ano: 2020
Filme assistido no 9º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba
Em cartaz no Cinema do Dragão à partir do dia 31 de março de 2022
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