9º Olhar de Cinema vibra com o caos de ‘Para Onde Voam as Feiticeiras’
CRÍTICA Ensaio livre (e falho) sobre a burocrática identidade brasileira
No caótico centro de São Paulo, que tanto parece a maioria dos centros urbanos brasileiros, um grupo de teatro prepara uma intervenção de projeção social sobre as incongruências de um Brasil incompleto. Do lado de cá da câmera, filmando pessoas negras, trans, indígenas, está Eliane Caffé, Beto Amaral e Carla Caffé, três pessoas brancas, cis, héteras. A pergunta, portanto, é imediata e vem percorrendo a maioria das reflexões acerca do filme: qual a ideia aqui?
Após 90 minutos de um ritmo ininterrupto de muito barulho, minha única conclusão possível é que a beleza desse filme está, contraditoriamente, no quão longe ele está de entender a si mesmo. Apesar de construir embates sociopolíticos entre diferentes peças pertencentes a esse jogo, Para Onde Voam As Feiticeiras nunca encara algo verdadeiramente, deixando que a essência dessa história esteja na razão pela falta de resposta. Dessa forma, controlada ou não, o filme registra a confusão que originou essa identidade tão burocrática do que é "ser brasileiro" e dá-la por finalizada mesmo inacabada.
Ao longo do século XX, o desenvolvimento da cultura midiática brasileira e a popularização dessa "identidade unificada brasileira" confrontou diretamente certa confusão dos impérios que nos dominaram - o europeu que chega a virar o século XX e o norte-americano que parece tomar as rédeas no pós-guerra. Ao atravessar nossa cultura industrial, essa identidade violenta é projetada nesse "ser brasileiro urbano capitalista" de forma tão grosseira que fica difícil desfazer. Nesse nosso romantizado século XXI, os gritos estão cada vez mais volumosos no ambiente virtual em denúncia sobre como essa identidade está atravessada pela injustiça, pelo racismo, pela desigualdade... Isso reflete um fenômeno angustiante que testemunhamos, a constante individualização da comunicação e do debate que gera um barulho onde as micro (e macro) esferas de poder não querem se entender.
No Letterboxd, um perfil escreveu: "Twitter, o filme". Achei brilhante, apesar de sua colocação ter se dado em demérito à obra. Porque, para o conforto e para o caos, é exatamente o que a obra registra: a desconversa como discurso. A discussão de identidade e resistência é um conflito que acompanha a história do mundo, mas o que acontece nesse século é que essas vozes se tornam superficiais no ambiente virtual em busca de um diálogo que não é buscado na vida real. Nas redes sociais não há um processo de mediação, perguntas e respostas se sobrepõem de tal forma que a discussão é contraída em si mesma.
Em dado momento do filme, uma mulher cis negra analisa que ela e uma mulher trans branca convivem com dores semelhantes, apesar de existirem em lugares imensamente diferentes em cada uma delas já que na pele branca, sobre qualquer corpo, ainda sobrevive o resquício de poder. A complexidade desse momento, porém, não está traduzido na maior parte do filme. A primeira face que chega até mim é de um filme que capta essa confusão que se vive aqui do lado de fora, projetada na tentativa de encaixá-la na cidade, ao fazer um grupo de atores enxergá-la no povo do "mundo real" mas sem a intensa sensibilidade de entender este mesmo mundo. Então o filme assume uma contraditória posição de dispositivo passivo e cúmplice dessas inconsistências, dessas falhas pessoalizadas.
Ou seja, o maior mérito de Para Onde Voam As Feiticeiras é não saber o que está transformando, não compreender efetivamente o que se filma. Agora, se o mérito é de Eliane Caffé, Beto Amaral e Carla Caffé... Essa questão já merece outra reflexão certamente muito mais extensa do que essa.
Filme assistido no 9º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba
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