As pobres criaturas da literatura por trás do filme de Yorgos Lanthimos
ENSAIO A essência de uma história rejeitada várias vezes por ser “muito estranha”, e que hoje é destaque nas principais premiações mundiais, tem suas raízes na literatura escocesa e no clássico gótico Frankenstein
Uma produção que fala da liberdade e da autodescoberta de uma mulher é particularmente comum entre a leva de filmes contemporâneos intitulados “feministas”. Porém, o enredo de "Pobres Criaturas", filme de Yorgos Lanthimos que estreia hoje nos cinemas brasileiros, transcende o convencional coming of age e se torna destaque na indústria cinematográfica, conquistando 11 indicações ao Oscar. A estranheza da narrativa é fruto do livro homônimo de Alasdair Gray, escritor e ator escosses, publicado em 1992.
Apelidada de "Frankenstein Feminista" por críticos do mundo todo, Bella Baxter – interpretada por Emma Stone – renasce no cérebro do seu bebê pelas mãos de Godwin Bysshe Baxter – interpretado por Willem Dafoe – médico cientista que coloca a ciência e seus experimentos no pedestal da vida, mas se afeiçoa à mulher que surgiu após seu experimento.
A obra utiliza de referências de "Frankenstein ou o Prometeu Moderno”, romance gótico de 1818, para costurar a trama da história que hoje é aclamada pela crítica. As menções começam na escolha do nome do médico: Godwin vem de William Godwin e Bysshe vem de Percy Bysshe Shelley, respectivamente pai e marido de Mary Shelley, autora da publicação.
Em Frankenstein, o médico é frequentemente retratado como um homem obcecado na busca pelo conhecimento, sem levar em consideração as implicações éticas de suas ações, o que pode ser muito bem relacionado com a essência de Godwin em Pobres Criaturas, considerando o próprio experimento envolvendo Bella Baxter como exemplo principal.
Por outro lado, as diferenças pontuais entre a trama de Alasdair e de Mary Shelley são percebidas quando vemos a contradição dos criadores e das criaturas. Ambos os enredos lidam com a criação de vida, mas enquanto Frankenstein busca criar uma vida artificial, "Pobres Criaturas" explora a ressurreição de seres humanos. Bella Baxter é uma mulher belíssima criada pelo médico Godwin Baxter de aparência grotesca, e no romance de Shelley, o aspecto grotesco é reservado para a criatura gerada pelo médico Victor Frankenstein.
Um aspecto que não existe na obra de Mary Shelley, mas é um elemento importantíssimo no livro e filme homônimos, é o humor. Alasdair se coloca como um mero editor dos manuscritos incluídos no livro e inclui dois pontos de vista da mesma narrativa, um masculino e um feminino. O autor expõe seu aspecto humorístico e sarcástico logo na introdução, quando diz que escolheu posicionar a versão feminina do relato no final da publicação, pois esta seria a narrativa de uma “mulher perturbada que quer esconder a verdade sobre o início de sua própria vida”.
Na obra cinematográfica, os elementos humorísticos percorrem cada aspecto da produção, desde Bella e seu comportamento infantil e suas falas sem filtro, até as imagens animalescas presentes. Os sarcasmos e paródias também são peças chaves na concepção do humor diante de um mundo que, mesmo surreal, ainda abriga as amarras do androcentrismo.
Mas para quem imagina que incluir as temáticas de misoginia e o papel das mulheres na sociedade – o que ocasionou o título de “Frankenstein feminista” à Bella – é mérito unicamente de Yorgos, o livro de Alasdair, em 1992, e o de Mary Shelley, em 1818, também mergulham nas mesmas teses, ainda que em momentos tão diferentes da história humana.
Mary Shelley levantou a questão de mulheres na ciência há mais de 200 anos, por ser uma adolescente de 19 anos quando escreveu Frankenstein, romance sombrio com elementos de terror e ficção científica. Já best-seller na sua primeira edição, a obra foi inicialmente publicada com autoria de Godwin, seu pai, e só em 1831 passou a ter seu nome cravado nas páginas. "Como teria eu, então uma jovem, chegado a ideia tão horripilante e, depois, a elucubrar tão longamente sobre ela?”, questionou ela em introdução feita na terceira edição de Frankenstein, em 1831.
Cerca de 174 anos mais tarde, Alasdair Gray recupera a natureza de Frankenstein e inclui a discussão sobre o espaço das mulheres na ciência dentro da trama. O próprio Godwin expressa essa problemática ao comentar que “o divorcio prejudica gravemente a carreira de uma médica começando a trabalhar na escócia”. Na versão feminina da história de Bella Baxter colocada no final do livro, a inversão dos papéis de gênero é marcada pela frase “eu tenho uma esposa muito boa em meu marido”, escrita pela personagem.
Por fim, 206 anos após Frankenstein e 32 anos após o livro homônimo, Pobres Criaturas de Yorgos Lanthimos expõe uma Bella Baxter autossuficiente e entusiasmada com suas experiências sexuais. O advogado Duncan Wedderburn – interpretado por Mark Ruffalo – protagoniza momentos cômicos da trama por ter sua pose de “pegador” aos poucos desmantelada por Bella enquanto viajam pelo mundo.
É na relação entre Bella e Duncan que é possível ver com mais clareza como um homem branco, hétero e europeu interpreta o conceito de feminismo, considerando que o filme inteiro se constrói ao redor de Bella e seu despertar sexual, fugindo do encarceramento de outros homens, dos trejeitos conservadores e da filosofia da “moral e bons costumes”. Ela não se inibe ao ser chamada de “puta” – inúmeras vezes – seja por sua própria babá ou pelo seu amante mais feroz, nem sucumbe a qualquer sentença masculina dada a ela.
É possível perceber que Pobres Criaturas não seria Pobres Criaturas sem a originalidade de Alasdair Gray, nem o pioneirismo de Mary Shelley. Porém, mesmo difícil de admitir, a banalidade de uma aventura de autoconhecimento se torna palpável na tela do cinema, o que vai além de qualquer descrição escrita sobre a realidade fantástica absurda.
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