Com tesão e delírio, ‘Queer’ enquadra mistérios da vida gay nos anos 1940
★★★★☆ Estrelado por Daniel Craig e Drew Starkey, drama equilibra realidade e fantasia para retratar certezas e segredos de uma paixão sem destino
Quando os dois estão finalmente cara a cara, no balcão do bar, alguns dias depois da primeira vez que cruzaram olhares num pacato pedaço daquele México dos anos 1940, é evidente o quanto Lee está fascinado pela existência de Eugene, um jovem que atrai justamente pelo mistério. Enquanto ele conta algo muito empolgado, Lee o observa. Vemos sua mão translúcida tocando o rosto do outro, uma sobreposição simples de imagem, mas que conta a delicadeza daquele desejo emergente. Um desejo que, porém, ainda não pode acontecer.
Em torno de um erotismo velado que se repete de forma autêntica na sua carreira, Luca Guadagnino expande seu delírio de forma comovente. Ao redor desses dois homens que se atraem com discrição, há uma tensão nunca encarada, de fato. Expatriado dos EUA, o personagem de Daniel Craig é construído sob a frustração latente de um passado desaparecido, mas diante de um limite que o alcança com tranquilidade.
Craig encorpa esse sentimento com tanta dedicação que fiquei com uma forte sensação de que é a partir de agora que veremos seus melhores papeis no cinema, ainda mais liberto e entregue à vulnerabilidade - a comparar-se, claro, com as franquias que lhe alçaram a um estrelato blockbuster com James Bond e Mikael Blomkvist. A dureza do seu semblante empresta a Lee certa ingenuidade contraditória, colocada em risco justamente quando se acanha pela presença desse outro forasteiro.
Do outro lado, porém, Drew Starkey disfarça Eugene de uma convicção que não ultrapassa a aparência, especialmente pela beleza da sua juventude ser invocada como uma armadura muito frágil. Por fim, os dois personagens não sabem quem realmente amam ou para onde estão indo. Como tantos homens gays em qualquer tempo, há tesão e urgência, mas também mistério e muito medo quando essa romantizada ideia de futuro começa a rodear a percepção da realidade.
Em busca dessas respostas, eles colidem, se afastam e se cruzam, meio que tudo ao mesmo tempo. Guadagnino é esperto porque usa essa premissa aparentemente tão recorrente em romances e faz disso o motor de um delírio muito próprio. As imaginações que Lee cria sobre sua solidão resultam em momentos que já seriam lindos se a camada fosse apenas estética. As cenas de sexo, portanto, são criadas para alcançar esse lugar do sublime, de um ato incontornável e natural, como se fosse um milagre, mesmo que a ação seja algo tão comum.
“Não é um portal… É um espelho. E você pode não gostar do que vai ver”, pondera alguém em tom ameaçador quando Lee pergunta sobre uma experiência espiritual que está atrás pela expectativa de que uma dita “telepatia” vá dar as suas respostas. Comprometido com esse além, mergulhamos nessa alucinação que está também na imagens - é tudo brilhoso, límpido e pasteurizado, de certa forma, na luz dourada, nos cenários recriados com ajuda de CGI, e até mesmo na trilha que, mais uma vez, conta com Caetano Veloso.
É como um estado de sonho, que de repente pode até virar pesadelo, mas que está ali como se cada segundo desse filme não passasse de uma profunda saudade. Distante de todo esse contexto, Lee e Eugene me fizeram repensar toda a minha vida como um homem gay que vive neste século XXI, aparentemente tão resolvido e afirmativo, mas talvez tão impessoal e frio quanto aquele dos anos 1940. Numa equação bonita e devastadora de tempo e desejo, seja nas ruas, nos bares, nos quartos, nos aviões ou até mesmo no meio da selva fechada, “Queer” sabe parecer sério e engraçado, grave e banal, tudo isso enquanto se desmancha a olho nu.
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