Tiradentes: No mundo de "Rodson ou Onde o Sol Não Tem Dó", o lixo é um outdoor
CRÍTICA Delírio desesperado, um pedido de socorro: as urgências que determinam uma obra brilhantemente experimental
Há uma cena do programa "O Último Programa do Mundo", do Daniel Furlan, que se passa no futuro e o apresentador encontra um poeta sozinho no meio do mato. Quando lhe pergunta por que ele está declamando seu texto para as árvores, o poeta responde: "Aqui é o futuro, cara. E no futuro, não tem mais público não. Só tem artista". Cômica e curiosamente, este é o mesmo futuro de RODSON ou (Onde o Sol Não Tem Dó).
Para introduzir esse Ceará do próximo milênio, Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra (os guias anárquicos desse rolê) estouram a fotografia no limite para filmar um calor tão insuportável que foi parar no título do filme. Então é numa mistura, inicialmente indigesta, de cinema amador com o histerismo de algum tipo de humor, que conhecemos o protagonista dessa história: Rodson, o garoto reprimido pelos pais por dar moral a um robô que lhe prometeu conhecimento. O que realmente impressiona é que a irreverência desse prólogo é fichinha pelo que vem depois: a assustadora e imprevisível jornada pelo sertão em busca... de quê mesmo? Da arte?
Quando esse pacajuense pega a estrada rumo à uma nova vida, a passagem pelas montanhas nordestinas parecem expor a estrutura mais desordenada dessa ideia: a história está na viagem, no trajeto, na busca por algum tipo de anseio honesto em meio ao contexto desse país do futuro onde qualquer possibilidade de arte foi criminalizada. Quando finalmente chega na "cidade grande", Rodson vê se materializar diante de si o estado da censura - dessa vez não dos pais, mas do próprio estado que caça festas clandestinas e do capital que vende as "últimas garrafas de água do mundo". Nesse outro universo de repressão, há muitas outras histórias e submundos que, de alguma forma, "resistem" com muito barulho. Ou seja, claro que essa história não deixa de ser profundamente contemporânea ao refletir sobre os projetos de Brasis que estão em curso nos últimos anos, mas é no humor de sua construção que esse conflito é levado ao ano de 3000.
Nesse contexto, um mundo onde a expressão subjetiva foi completamente suprimida e aniquilada dos meios sociais e midiáticos, Rodson encontra uma metalinguagem política bastante especial ao se deixar ser construído exatamente como um filme poderia existir nessa época fictícia: feito às pressas, sem tempo para elaborações, concebido na clandestinidade com poucos recursos, caótico, mesclado ao documentário, ao experimento (até como forma de protesto), misturado em arquivos hackeados e registrado com ferramentas antigas como se encontradas em ferro-velho. Um Cinema de Garagem do futuro? (pedindo licença aqui a Marcelo Ikeda e Dellani Lima pela projeção e reinterpretação)
Num ritmo incessante, que invejaria até Gaspar Noé, Rodson quer ser "apenas" o longo caminho de um filme ainda a ser feito, pois não há qualquer intenção de padronizar sua narrativa, nem em estética e muito menos em caracterização. Os letreiros mudam de identidade sempre que reaparecem (e até a mera existência de cartelas), o som das conversas que nunca está com o mesmo tratamento, a composição de "vida real" confrontando à do videogame e da alucinação, a tensa trilha sonora cibernética que parece contemplar um som não-humano... É um delírio único demais para que possa ser descrito assim num texto formal. Um cinema de invenção quase pura que, diante do caos, não tem qualquer caráter aleatório, pois todas as experimentações visuais reinterpretam elementos dessa nossa vida digital para dizer que elas rapidamente pertencerão ao passado.
Nessa jornada sobre mídia, aprisionamento cultural, imprensa, política, religião, repressão estratégica... o que Rodson realmente aprende além do eterno movimento para seguir vivo? A esquecer o tempo? A aceitar que não há espaço para o que ele compreende por arte? Quando surge a personagem Evy, no que parece ser uma resposta da obra para este nosso tempo, progride-se a arte de consumo hegemônico, do sensacionalismo, dos espaços prioritários, do deslocamento premeditado. A Rodson cabe a fuga de tudo, até mesmo da sua voz e da sua presença no mundo como mero cidadão.
Sabe o que é o melhor de tudo isso? Talvez não tenha ficado explícito, e agora relendo percebi uma continência involuntária da minha parte, mas toda essa história é filmada como uma grande brincadeira. É um cinema que realmente brinca com a possibilidade de ser, efetivamente, cinema, de ter um discurso, de ser uma peça do futuro. Mesmo desbulhando os pesares do estado da arte experimental, RODSON ou (Onde o Sol Não Tem Dó) é divertidíssimo, de chorar de rir. É marcante quando a Cavalona Dichavada surge no filme como uma líder criminosa que gerencia o manifesto de uma "arte-amadora" - afinal, nesse mundo em que ciborgues são mortos pela milícia e que o lixo faz tão parte da realidade ao ponto de ser outdoor "de alta concorrência", era de se esperar mesmo que Rodson perdesse a cabeça e nos levasse junto.
★★★★★
Direção: Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra
Roteiro: Cleyton Xavier e Urutau M. Pinto
Direção de Produção: Cleyton Xavier, Urutau M. Pinto e Lyna Lurex
Montagem Clara Chroma e Cleyton Xavier
Fotografia Cleyton Xavier, Urutau Maria Pinto, Insiranomeaqui, Orlok Sombra, Biela, Lyna Lurex e Nirá Link
Trilha sonora Cleyton Xavier e Clara Chroma
Mixagem Clara Chroma
Edição de som Clara Chroma e Cleyton Xavier
País: Brasil (CE)
Ano de lançamento: 2020
Essa crítica faz parte da Cobertura da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes
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