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Foto do escritorArthur Gadelha

Entre Spielberg e Chazelle, a redenção de Hollywood na memória e na paródia

ENSAIO Recebidos com atenções diferentes na temporada de premiação norte-americana, The Fabelmans (2022) e Babilônia (2022) se completam quando entram em rota de colisão.

Margot Robbie e Diego Calva em "Babilônia"

Foi uma experiência tão bonita quanto angustiante assistir, na mesma semana, dois filmes próximos em intenção, mas separados por vários abismos: The Fabelmans, de Steven Spielberg; e Babilônia, de Damien Chazelle. De um lado, um astro da chamada "Nova Hollywood" que fez parte de imensa invenção dessa cultura norte-americana que hoje experimentamos. Do outro, um novato que veio a Terra para dizer aos anciãos da Velha Hollywood que ele não existiria sem tudo o que fizeram. Em ambos os filmes, a vontade de justificar seus talentos diante das inspirações baseadas no cinema do qual fazem parte. Um filme limpo e um filme sujo, respectivamente. Um olhar mais grosseiro poderia até dizer que os filmes se completam, mas é quase como se anulassem.


Chazelle, o maestro mais perturbado dessa equação, tem um histórico charmoso de obsessão: em 2014, Whiplash chegou ao Oscar com uma timidez que não combinava com sua natureza explosiva: um professor e um aluno obcecados pela regra, esvaziando a própria arte de diversão e prazer. La La Land (2016), que chegou em Hollywood como um meteoro indesviável, saía da penitência para entrar no sublime: os musicais que saltaram para dar potência a chegada do som, todos ali misturados numa historinha de amor. Babilônia (2022), que aparentemente chega ao Oscar por pena, consegue algo muito indigesto para chamar de homenagem: a fantasia e o declínio, indissociáveis, cruzados, ao mesmo tempo.


Com uma energia digna de Gaspar Noé, o prólogo de Babilônia põe em jogo todo humor e contradição do gesto: uma longuíssima festa que comove a cada novo segundo com direito, claro, a uma trilha sonora que não descansa na missão de se fazer memorável. Estamos numa festa da “elite” da indústria cinematográfica e absolutamente tudo impressiona: o ritmo da montagem, a figuração, o desenho de produção e principalmente a direção que parece deslizar a câmera pelo imenso cenário sem dificuldades.


Tem sexo, tem mijo, tem ego, tem morte, tem fé. Ali dentro estão barões do cinema mudo, personalidades da mídia e, o que mais nos interessa, os anônimos, aspirantes a fazer parte daquele inferno: Manny e Nellie, figuras da margem na mira do centro. Na cena seguinte, vamos descobrindo que o filme é deles, enquanto vislumbram o poço de privilégio, preconceito e exclusão desse universo que sempre sonharam fazer parte. Foi assim que Chazelle se sentiu ao ser alçado ao estrelato quando resolveu, simplesmente, se mostrar grato?


© Storyteller Distribution Co., LLC. All Rights Reserved.
Gabriel LaBelle como Sammy Fabelman em "The Fabelmans"

Do outro lado, alguém que inevitavelmente já respeitamos há muito tempo. Ao olhar para a origem de sua aspiração, Spielberg faz um “auto-filme” que até demorou para acontecer, visto que nos últimos anos tivemos Almodóvar com Dor e Gloria (2016), Paolo Sorrentino com A Mão de Deus (2021) e até Kenneth Branagh com o sofrido Belfast (2021). Diante dessa proposta inevitavelmente recheada de carinho, está clara a distância que The Fabelmans (2023) tem da Babilônia quilométrica – afinal, este é um filme polido, brilhoso e radiante como as nossas boas memórias de infância. Isso porque a Hollywood que brilha nessa tela do Spielberg é apenas a do lado de cá, a sensação de que o mundo pode ser construído e transformado por imagens, pelo sonho.


Numa cena delicada e bastante alegórica, o pequeno Sammy acolhe uma projeção amadora em suas próprias mãos, seguradas lado a lado para emular uma pequena tela de cinema confidencial. Seu olhar brilha. Ao longo do filme, vamos descobrindo outras formas desse cinema dos EUA que moveram o cineasta muito antes dele ter a consciência do que significava aquilo ser uma indústria e que entrar nela, naturalmente, seria uma tarefa constantemente caótica. Não à toa, o primeiro contato que o personagem tem com esse universo fora de sua bolha acontece apenas nos últimos minutos quando é introduzido com burocracia, egocentrismo e com uma cômica grosseria na breve participação de David Lynch.


Diante disso, Steven faz um filme sem arranhões ou grandes conflitos, mas imerso em sensações tão bem construídas (diante da família, da arte e de si mesmo), que essa constante emoção sobre a “descoberta” do artista nunca parece fajuta, frouxa e nem mesmo egocêntrica. Pelo contrário, comove de forma imprevisível, podendo inclusive suscitar memórias particulares que cada um na plateia possa ter com sua própria experiência de cinema, como aconteceu comigo – a sinergia entre Gabriel LaBelle, Michelle Williams e Paul Dano são os grandes responsáveis.


Enquanto The Fabelmans constrói esse cinema de eterna promessa do sonho, do refúgio, do encontro de si, a Babilônia do Chazelle finge que está olhando de fora e vendo a intriga, o limite e a crueldade, apresentando as paixões individuais como um motor de persistência em meio ao caos – Diego Calva e Margot Robbie, especialmente, brilham nessa odisseia de música, delírio e pesadelo. Independente da distância entre esses filmes, seus desfechos fazem questão de nos lembrar que apesar de tudo, a realidade não existe. Afinal, estamos falando de cinema, correto?


Enquanto Spielberg inventa um passado digestível, Chazelle nos empacha de uma interminável paródia. No contexto de um século que vive para se alimentar dos outros, vide a enxurrada de remakes, reciclagens, sequências, prequels e nostalgias pinçadas, isso me parece ótimo. Sonhar e sofrer com as lacunas desses filmes tão diferentes é como tomar um antídoto passageiro.

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