‘The Post’ e o heroísmo fast-food de Steven Spielberg
CRÍTICA Concorrendo à duas estatuetas do Oscar, "The Post" é piloto automático de Hollywood
Nos minutos iniciais de The Post: A Guerra Secreta fiquei aguardando um dinossauro irromper o silêncio da floresta molhada que é desbravada por soldados americanos. Há urgência, uma inspirada fotografia vinda de Jurassic Park e personagens de aparência importante - muita coisa compõe um prólogo que é logo esquecido porque sua única função é tentar trazer um background de realidade. Mas para Steven Spielberg, a realidade não basta. Essa lembrança cômica é a prévia do que engrandece e desnorteia essa grande história, já que The Post é exatamente como Spielberg faria um filme humilde se tornar um ícone de Oscar com Meryl Streep e Tom Hanks.
A começar por Meryl, indicada a Melhor Atriz pela 21ª vez, e claro que Steven precisou destacar sua presença reduzida pelo relato - afinal, parece impossível trazer uma atriz de peso para ser presente nos bastidores da ação. Em uma cena de contexto interessante, quando a personagem de Katharine traz uma recordação à filha, a trilha melancólica surge para nos lembrar que a cena é emocionante. É um paradoxo o incômodo por se sentir manipulado numa arte que é pura manipulação, mas duvidar da emoção nata de Meryl Streep é um sintoma de pressa que a obra tem de sobra.
Em A Dama de Ferro, Margareth Thatcher pergunta a filha onde está seu pai, e ela a recorda que está morto há alguns anos. Meryl olha em seus olhos e se emociona de modo muito parecido com a sequência de Spielberg, mas a emoção no silêncio é incomparável. No drama jornalístico, é preciso muita música e um travelling que não cansa de rodear do começo ao fim da projeção, tornando o cenário num palco móvel. De um lado, a calma de se fazer perceber a emoção; do outro, a urgência de potencializar um único momento porque ele precisa ser saltado. A sensação é de que Spielberg usa o impacto de Streep assim como a Globo acha que o talento de Fernanda Montenegro é suficiente à edificação do conteúdo frouxo de O Outro Lado do Paraíso.
Mas é claro que a narrativa acerta, em momentos chaves, no modo como tratar sua existência. Quando ao telefonema da decisão, a câmera que paira (e rodeia) de cima tem muito a dizer sobre o momento e nem precisa resgatar outros elementos fílmicos: Meryl e a câmera bastam. O mesmo acontece quando Katharine bate com o pé sobre a publicação, numa ideia de aproximação entre personagens que também lembra a imposição de Thatcher diante os homens “intimidantes” do governo britânico.
A emulação de Donald Trump sobre Nixon à meias vozes numa filmagem à distância é uma ideia que faz da narrativa de suspense, um elemento necessariamente forte num sentido contemporâneo. Mas é dessa mesma “atualidade” que o filme se atropela em entregar emoções fast-food numa história que precisa, à qualquer custo, aproveitar o momento. Trump cercando a imprensa, investigações de influência russa nas eleições americanas, além do debate mundial sobre o crescimento da intolerância: pautas que naturalmente se tornariam publicidade.
Nada mais propício ao seu desfecho que não se basta heroico, e precisa causar o sentimento de aventura que seus personagens passaram e ainda passarão. Algo como Christopher Nolan fez no twist cafona de Dunkirk, com a chegada triunfal dos soldados “refugiados”, e até mesmo como algo que Spielberg fez ao fim de Ponte dos Espiões, onde todos leem sobre o acanhado personagem de Hanks.
A tensão de Katharine é sufocada por um roteiro que a acessa oportunamente, desenhando a sensação de vítima que não sustenta as complexidades das ações. O anúncio de Bradlee (Hanks) sobre às complicações judiciais, a sequência do tribunal e a seguinte da revelação, evocam um suspense meio bobo: a emoção curta de Streep, a estagiária em sua defesa no julgamento e os dois telefonemas que custam a fazer o anúncio. Essa montagem que, de repente, opta por acelerar, põe em dúvida um acabamento que não permitiu elaboração ou revisão de seu ritmo.
Não duvido do poder desses acontecimentos, mas Spielberg vende como uma propaganda rápida, frágil. É feliz que seja sobre a liberdade de imprensa, e que isso faça da história uma temática instigante de acompanhar pelos capítulos. A sequência da publicação transforma o maquinário de impressão em super-herói e os jornalistas em soldados numa guerra contra a censura. É essa a ideia grandiosa que é pincelada do modo mais ágil possível num filme que se debruçar no desenho de emoção do fato.
O título “Directed by Steven Spielberg” surge como se fosse Star Wars. Vindo de outra “descoberta”, como quando Leia se vira em Rogue One, o corte rápido seguido de uma trilha que poderia estar em qualquer ação da Marvel, faz lembrar que Spielberg ama a forma como conta suas histórias. Uma forma que é quase que exclusiva de Hollywood ao adotar a realidade à estética de travellings descritivos, roteiro "enérgico", trilha alta sempre cúmplice da recepção, frases “fortes” para fincar o filme como importante, e o atraente título de “grandioso”. Talvez, ao evitar o clima morno, The Post não quisesse ser Spotlight.
Se feito distante dos holofotes da indústria bait, muito dificilmente esse seria seu clima. Mas a demanda da mesma indústria foi responsável por O Terminal, Prenda-me Se For Capaz, As Aventuras de Tintim, etc. - exemplos de ficções em ambientes “modernos” onde toda essa energia de “fazer cinema” combina com o tom de ação, com a sensação da aventura dramática; são filmes que entendem seus tempos de digestão.
The Post, ainda assim, é um filme que encontra substância no “tema de background”: a esperança da informação, o futuro do jornalismo, essas coisas que a gente sempre volta a falar em momentos de crise política. Num parâmetro inverso, é como os ávidos contra a corrupção parcial se acomodarem com um Polícia Federal: a Lei é para Todos porque ele narra um heroísmo almejado. The Post fala sobre um mundo com medo de Trump, um Brasil coagido por Temer - e claro, precisamos falar, denunciar, debater, nem que esteja no cinema como um serviço.
Não há qualquer problema com isso. Nunca foi segredo que filmes são documentos de seus tempos, mas a recepção pode ser ainda mais documental. A presença de Katharine, a exemplo, é esboçada sobre a pressão de ser uma líder mulher na década de 1970: sua chegada e omissão na reunião, e até mesmo quando a personagem de Sarah Paulson reduz o desafio de Bradlee para enaltecer a bravura que realmente importa na história. São intenções que poderiam ser integralmente emocionantes se The Post não passasse de uma encomenda.
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