Tom Cruise mereceu sua Palma de Ouro Honorária?
ENSAIO Honraria do 75º Festival de Cannes foi anunciada de surpresa ao ator americano
Se formos discutir as estranhezas conceituais desta edição comemorativa do Festival de Cannes, podemos começar pelo cartaz. Evocando, geralmente, cenas e artistas europeus numa espécie de honraria da história daquele cinema, é interessante perceber que os cartazes de edições seguidas destacaram artistas norte-americanos. Em 2021, a cabeça flutuante do Spike Lee e, em 2022, o corpo entusiasmado de Jim Carrey subindo as escadas para descobrir a verdade de seu mundo. O conceito é fascinante, e já aconteceu outras vezes, mas me surpreende que a comemoração de 75 anos do festival não tenha destacado uma memória francesa. Claro, o cinema dos EUA nunca foi inimigo do que se pensa em Cannes, e aqui que chegamos a Tom Cruise.
Quase 40 anos depois, a continuação de Top Gun (1986) chega assim meio que de surpresa, indo na leva desses remakes, sequels e prequels, uma espécie de cultura estrutural no cinema americano deste século. Não que alguém tenha efetivamente pedido – imagino que Top Gun não tenha fãs como Harry Potter ou Star Wars, tem? –, mas acaba que essa aventura chega num momento estratégico de “retorno às salas de cinema”. Após sessões de pré-estreia, o filme chega no 75º Festival de Cannes como a última tela antes de pisar nos cinemas, próximo dia 27 de maio.
Tom Cruise, que já virou evento ao pisar na França, foi para apresentá-lo, participar de uma conversa exclusiva na programação e, de quebra, receber uma cobiçada Palma de Ouro honorária. Mereceu? Acompanhando alguns comentários pingados pela internet, sinto que esse gesto está sendo levado mais como uma “cortesia” do que propriamente como uma honraria. Afinal, qual mesmo sua contribuição para o cinema?
Na pista desde os anos 1980, sendo dirigido por cobiçados autores americanos como Paul Thomas Anderson, Ridley Scott, Scorsese, Spielberg, Copolla e Kubrick, seu projeto de maior dedicação e fama é a saga Missão Impossível, em que estreou como produtor lá em 1996 com a clara proposta de criar uma “alternativa americana” ao sedutor James Bond. Essa saga, e acho que aqui merecemos falar mais dela já que o destino é Top Gun em Cannes, é surpreendente. Digo isso porque a persistência desse conjunto de filmes, sempre sob a mesma fórmula, tinha tudo para dar errado, cansar, se repetir, virar caricatura, mas isso não acontece. Mesmo que o conflito esteja sempre encharcado dos clichês de pendrives, listas secretas, espiões e terroristas, cada filme sempre soube se posicionar enquanto um entretenimento que orbita um universo próprio, cumprindo a missão de se comportar como “novidade” dentro de todas as expectativas de blockbusters, dos “filmes do verão”.
A cada novo capítulo, sequências memoráveis que caminharam na frente nesse cosmo dos “filmes de ação” – a escalada no prédio de Dubai, o assassinato na ópera, a perseguição de helicópteros, o vilão de Philip Seymour Hoffman, as máscaras, os voos, os saltos. No centro disso, Tom Cruise, um ator que é vendido também como autor dessa evolução orgânica e narcisista que já passou pela mão de tantos diretores. Para cada novo filme, manchetes sobre quais os limites que Tom havia cruzado para conseguir efetuar, sem dublês, a nova engenhosa cena de ação.
Quase 30 anos depois de uma jornada que persistiu no século dos filmes de super-heróis, Missão Impossível começa a desenhar seu fim. Pensado para 2023 e 2024, duas partes do mesmo filme – intitulado de “Acerto de Contas” – serão lançadas como uma consciente despedida. Cruise, aos 60 anos, dirá adeus apenas a Ethan Hunt ou ao cinema de ação?
Percebo que é diante dessa pergunta, com ou sem resposta, que Cannes aproveita a estreia de Top Gun: Maverick (2022) para dizer que reconhece a importância desse seu legado para um gênero que também é consumido na França. De certa forma, homenagear a carreira de Tom Cruise é também como dar um afago nessa cultura do espetáculo norte-americano, mesmo que ela seja quase sempre míope, arrogante e muito controlada pelo limite entre o gasto e o lucro. Mas olhar para o cinema como indústria, literalmente o conceito de Cannes, é ter que lidar com essa coexistência. Se o Pulp Fiction (1994) sai de lá com a Palma de Ouro, anos mais tarde é Cannes quem lança o fenômeno Parasita (2019) pro ocidente oscarizado.
Se são razões semelhantes a premiação de Jodie Foster na edição passada, são diferentes da principal deste ano, dada ao ator Forest Whitaker que certamente faz mais parte da história de Cannes do que Cruise. Venceu, em 1988, Palma de atuação por Bird, de Clint Eastwood, e como produtor está por trás até do lançamento de Chloé Zhao no circuito independente, além de suas ações de ordem humanitária. Distante da Palma de Cruise também está, por exemplo, a recebida por Agnès Varda em 2015 por seus quase 60 anos de carreira.
Não acho, porém, que essas distâncias acusem qualquer contradição por parte do pensamento do que é Cannes; pelo contrário, penso que reafirma sua própria missão. Essa Palma de Tom Cruise nos comunica o que nunca foi segredo em nenhuma dessas duas históricas indústrias, uma espécie de lembrete de que essa arte apadrinhada desfila numa corda bamba equilibrando as estruturas que a permite nascer e conquistar o mundo. Lembro do susto até hoje mal digerido de quando Coringa (2019), de Todd Philips, venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza sob o júri de Lucrécia Martel. Às vezes esses mundos colidem, deixando sempre à vista um debate curioso e, do seu jeito, até engraçado.
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